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Ciência, democracia e plutocracia
Por Administrador
Publicado em 10/07/2025 16:42
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Em vez de ter vida própria, o Estado americano se coloca como um hospedeiro neutro à espera dos parasitas mais competentes.

 

A pandemia de covid pôs a nu o conflito de interesses inerente ao modelo americano de produção de conhecimento, no qual o Estado subsidia pesquisas que inevitavelmente resultam em medicamentos patenteados por empresas privadas. A Big Pharma divide os seus quadros com a FDA, que sempre pode privilegiar os interesses das empresas e se esconder atrás do seu caráter técnico quando aparecem contestações políticas. É a intocável porta giratória. Não bastasse isso, o capital acumulado pela Big Pharma lhe permite subsidiar campanhas de políticos de ambos os partidos e ainda garantir uma imprensa alinhada, que noticia os fatos ao seu gosto e apresenta como especialistas confiáveis os seus influencers fabricados. O cientista que ganhou um Nobel de medicina não sabe de nada; quem fala a verdade é o divulgador de ciência que leu Sagan e é financiado pela Pfizer. No fim, esse “consenso” permite que o Estado ainda dê mais dinheiro à Big Pharma, comprando vacina patenteada para toda a sua população.

Em seguida, a questão do lobby sionista mostrou que essa captura do Estado por interesses particulares é um traço estrutural do sistema político americano. O dinheiro dado a Israel vai para lobistas que atuam em favor de o Estado dar mais e mais dinheiro para as guerras de Israel. O sistema americano é feito para dar errado: o mesmo Estado que dá dinheiro público para pesquisas privadas de saúde ou para Israel alimenta atores que irão, ao fim e ao cabo, usar esse mesmo dinheiro para arrancar ainda mais dinheiro público em proveito próprio.

É possível fazer uma profunda análise materialista disso. Mas foi lendo Decadência da psiquiatria ocidental (2021), do psiquiatra forense brasileiro Guido Palomba, que percebi que o problema é de raiz epistemológica.

Democracia na psiquiatria levou à plutocracia

O psiquiatra começa o livro apontando o fato já notado por todo espírito cético: que basta entrar num consultório psiquiátrico para ganhar um diagnóstico e, em seguida, receita de remédios. No livro, vemos que a coisa é tão grave que os médicos, na prática, já podem ser substituídos por IA: “A inteligência artificial em Psiquiatria está baseada em dados, protocolos, em perguntas prontas e respostas convertidas em padrões para serem submetidos aos algoritmos, à pontuação final e à comparação com o paradigma. A seguir, vem o diagnóstico, a recomendação do remédio, a posologia, o receituário preenchido e assinado pelo médico de plantão, os links das farmácias nas quais pode ser comprado, quanto vai custar, se precisa ou não de serviço de entrega a domicílio e o tempo que demora, cada vez menor, considerando os drones, mais rápidos e eficientes do que os motoboys” (p. 152).

Isso só é possível porque a formação do psiquiatra aboliu a causalidade e passou a ser regida por estatísticas. DSM significa Manual de Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais e é uma publicação feita pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). Assim, o DSM tem uma lista de doenças mentais que são definidas por uma lista de sintomas. A APA não oferece o nome de um teórico, nem nada; oferece apenas uma lista de doenças e uma lista estatística de características. Com base nisso, criam-se questionários com uma pontuação que varia segundo o número de características da doença assumidas pelo paciente. Para fechar um diagnóstico, cabe ao médico aplicar questionário e somar a pontuação. Se um paciente triste com um término de namoro entra num consultório psiquiátrico, tudo o que o médico tem que fazer é aplicar-lhe um questionário para poder receitar o antidepressivo – ele não precisa nem descobrir o término do namoro. Estatisticamente, os deprimidos apresentam os mesmos sintomas que ele e isso é o que importa, não as causas da tristeza.

Em Decadência da psiquiatria ocidental, Guido Palomba dá ao mesmo tempo uma cronologia e uma explicação do fenômeno. Do século XIX até a primeira metade do século XX, a psiquiatria viveu a sua melhor fase; havia uma porção de escolas diferentes que visavam à explicação dos mesmos fenômenos. Na década de 1950, após experimentações químicas com mescalina e drogas sintéticas (assunto que, aliás, comentamos aqui), abre-se o caminho para os psicofármacos: as doenças mentais passam a ser explicadas como desequilíbrio químico, a ser corrigido com drogas. Surge assim o motivo financeiro para aumentar o número de diagnósticos e, por conseguinte, de venda de remédios. Para piorar, isso coincidiu com a era da TV, quando a propaganda passou a ser muito mais eficiente.

A época do pós-guerra foi também a do crescimento da relevância da ONU. Diante desse cenário de pluralidade de teorias e de países, a OMS cria a Classificação Internacional de Doenças (CID), visando à padronização das doenças. Não se tratava de uma investigação científica, mas da constituição, por assim dizer, de um esperanto médico a ser utilizado em estatísticas globais. A CID é feita por consenso “democrático”, não por teorização. No fim das contas, os livros-textos, dotados de teorias científicas e explicações causais, foram substituídos por livros de convenções a serem decoradas e aplicadas mecanicamente (a CID e o DSM).

Não à toa, o próprio DSM informa que seu conteúdo não tem aplicabilidade na psiquiatria forense – área na qual o psiquiatra, sem pressões mercadológicas, tem que prestar contas ao juiz ao avaliar as causas dos comportamentos dos criminosos e a sua periculosidade. É bizarra a ideia de que a mesma teoria científica serve para clinicar, mas não serve para dar pareceres sobre os doentes mentais depois de eles cometerem crimes. O ponto é que a psiquiatria clínica não se guia por uma teoria científica, simples assim.

Do fato de a psiquiatria clínica estar sujeita à influência do mercado seguiu-se a sua decadência. Já a psiquiatria forense permaneceu como bastião por prestar contas à justiça. Além da área da psiquiatria forense, Guido Palomba recomenda o livro Mental Health Survival Kit (ou “Kit de Sobrevivência da Saúde Mental) do médico dinamarquês Peter Gøtzsche como exemplos de resistência.

Democratismo maluco

De onde será que vem essa brilhante ideia de decidir o que é verdade com base em consenso? Num livro completamente diferente (Death of the Liberal Class, do jornalista estadunidense Chris Hedges), vi a história de como a Igreja Unitária Universalista resolveu criar os seus Sete Princípios. Os filhos dos membros dessa igreja protestante liberal não sabiam dizer aos coleguinhas qual era o credo da sua própria religião, e então perguntavam aos pais, que tampouco sabiam responder. Assim, as lideranças fizeram um censo, perguntando aos próprios fiéis em que é que eles acreditavam e criaram os Sete Princípios com base nas respostas majoritárias.

A mim, pareceu uma ideia completamente maluca. Mas o contexto cultural deles, pelo jeito, permite isso. E assim entendemos de onde vem a maluquice do DSM: se esse povo é democrático até para definir a verdade religiosa, não é de admirar que seja assim com a verdade científica. E dada a tábula rasa a que são reduzidas as instituições (pois tanto a Igreja quanto a Ciência estão aí para serem preenchidas pelo que a votação decidir), não é de admirar que o próprio Estado seja destituído de um interesse próprio coeso, distinto do interesse das corporações e cidadãos particulares. Em vez de ter vida própria, o Estado americano se coloca como um hospedeiro neutro à espera dos parasitas mais competentes.



Autora: Bruna Frascolla - historiadora da filosofia, doutora pela UFBA, e ensaísta.

Fonte: https://strategic-culture.su/news/2025/07/09/ciencia-democracia-e-plutocracia/

 

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