Como pode um país com quase dois milhões de pobres votar maioritariamente em partidos de centro-direita e extrema-direita, em vez de apoiar propostas claramente sociais e redistributivas?
À primeira vista, parece um paradoxo. Mas, na verdade, é o sintoma profundo de um desgaste sistémico da democracia representativa, das promessas não cumpridas da social-democracia e da crescente influência de narrativas simplificadoras num contexto sociocultural em fratura.
O voto das camadas mais pobres nestas forças políticas não é irracional - é um grito de protesto, de desencanto e de desejo de reconhecimento.
É também reflexo de três grandes fatores estruturais:
- A falência das "esquerdas tradicionais" (incluindo PS e PSD, que em Portugal encarnam uma alternância consensual no centro político), que há décadas não conseguem dar resposta às necessidades reais de quem mais precisa.
- Um ambiente mediático e digital cada vez mais distorcido, que favorece discursos simplistas, emocionalmente eficazes, mas politicamente vazios.
- Uma sociedade fragmentada, despolitizada e "emocionalizada", onde as pessoas já não se reconhecem como parte de uma classe ou de um coletivo, mas como indivíduos isolados perante o medo, o ressentimento e a incerteza.
Vivemos um tempo em que a solidariedade de classe se quebrou.
As comunidades tradicionais - bairros operários, sindicatos, associações locais, cooperativas - foram perdendo força ou desapareceram. O envelhecimento das gerações que viveram sob o fascismo esvaziou de memória cívica e histórica muitos espaços de luta e organização. O que sobra é uma sociedade atomizada, onde as redes sociais substituem os laços sociais, e a política se transforma em espetáculo ou em campo de batalha simbólica.
Nesse vazio, as ideias políticas deixaram de se organizar por interesses de classe e passaram a ser mobilizadas por afetos difusos, medos partilhados, raivas acumuladas. A extrema-direita sabe disso. E por isso promete "dignidade", "voz", "ordem" - ainda que o seu projeto real signifique mais exclusão, mais desigualdade e mais autoritarismo.
É neste terreno fértil que os populismos autoritários crescem.
Se as forças sociais moderadas e progressistas não forem capazes de reconstruir vínculos afetivos, comunitários e políticos com as classes populares, não bastará apresentar bons programas. Será preciso presença real, escuta atenta, coerência ética - e, acima de tudo, coragem para enfrentar os interesses que bloqueiam uma transformação social verdadeira.
A alternativa não será um novo ciclo político, mas o aprofundamento do desencanto democrático - e, com ele, o risco de uma viragem sombria, onde a pobreza continuará a crescer, mas mascarada sob discursos de ordem e identidade.
João Gomes in Facebook