O holocausto dos corpos
"Sangrei por dez dias em outubro sem ter acesso a uma casa de banho real.
A casa onde nos abrigamos, como a maioria dos abrigos em Gaza, não ofereceu privacidade.
Quarenta pessoas dormiam em dois quartos.
A casa de banho não tinha porta, só uma cortina quebrada.
Lembro-me de esperar que todos adormecessem para que eu pudesse lavar-me com uma garrafa de água e pedaços de pano.
Lembro-me de rezar para não manchar o colchão que compartilhei com três primos.
Lembro-me da vergonha - não do meu corpo, mas de não poder cuidar dele.
Na guerra o corpo perde os seus direitos.
Principalmente o corpo feminino.
As manchetes raramente falam sobre isso, o que significa para uma criança ter os seus períodos sob bombardeamentos, mães obrigadas a sangrar silenciosamente e abortar em solo frio ou dar à luz sob drones.
A guerra em Gaza não é apenas uma história de escombros e ataques aéreos.
É uma história de corpos interrompidos, invadidos e negados ao descanso. E ainda assim, de alguma forma, estes corpos ainda existem.
Como mulher palestina e estudante deslocada que agora vive no Egito, carrego comigo esta memória corporal. Não como uma metáfora, mas como um facto. Meu corpo ainda treme diante de barulhos altos. Minha digestão é louca. Meu sonho está destruído. Conheço muitas mulheres – amigas, parentes, vizinhas – que desenvolveram doenças crónicas durante a guerra, que perderam a menstruação durante meses, cujos seios secaram enquanto tentavam amamentar em abrigos. A guerra entra no corpo como uma doença e fica.
O corpo de Gaza é um mapa de interrupção.
Aprenda rapidamente a lutar, ocupar menos espaço, ficar alerta, suprimir o desejo, a fome, a hemorragia. A natureza pública do deslocamento destrói a privacidade, enquanto o medo constante agrava o sistema nervoso. Mulheres que um dia apreciaram a sua castidade agora trocam de roupa na frente de estranhos. As garotas param de falar sobre o período. A dignidade torna-se um fardo que ninguém pode pagar.
Este é o paradoxo da sobrevivência: o mesmo corpo a quem a segurança é negada torna-se o instrumento de resistência. Mulheres fervem lentilhas à luz das velas, acalmam as crianças na cave, embalam os mortos. Estes atos não são passivos, são radicais. Ter períodos, levar, alimentar, acalmar – em meio à destruição – significa insistir na vida.
Volto vezes sem conta para a imagem da minha mãe durante a guerra. Costas curvas diante de uma panela, mãos tremendo, olhos coçando o teto a cada ruído. Eu não comeria até que todos os outros comessem. Não conseguia dormir até as crianças dormirem. Seu corpo carregava a arquitetura da guerra e da maternidade ao mesmo tempo. Agora percebo quão política era a sua fadiga - como o seu trabalho, como o de tantas mulheres palestinas, desafiou a lógica da aniquilação.
Não há tenda para cadáveres em Gaza.
Não há espaço seguro onde o corpo feminino possa desenvolver-se sem medo. A guerra nos tira - não só de nossas casas e posses, mas também dos rituais que nos tornam humanos: lavar-se, ter menstruação, processar a dor em particular.
Mas mesmo sem abrigo, os nossos corpos perduram. Eles lembram-se. Eles aguentam.
E talvez, na sua perseverança tremida,
Eles escrevem a história mais verdadeira de todas. "
Mariam Khateeb -
19 de maio de 2025
Nota: O site “Notícias Independentes” ao postar este testemunho presta solidariedade à autora e, por seu intermédio, a todo o Povo palestino.
Palestina livre e soberana, já!