Situação limite da Ucrânia opõe Europa Ocidental e americanos como nunca desde a Segunda Guerra.
De tédio não padecemos na última quinzena. O Ocidente se viu em ebulição e confusão. A começar pelo sermão que Donald Trump deu em Volodymyr Zelensky no Salão Oval, seguido das advertências – e ações – de sua administração contra a Ucrânia, passando pelos protestos europeus de ruptura da aliança atlântica, em prol de uma suposta defesa autônoma contra a Rússia. Quem imaginaria que íamos chegar até aqui?
Na falta de um presidente democrata na Casa Branca, os líderes europeus capricharam em uma performance digna de qualquer um deles: o mesmo maniqueísmo pedantemente messiânico conectado com bombardeios de pânico moral na mídia global tomou lugar; dessa vez, com os líderes europeus como protagonistas. Apesar de certa encenação, é a maior tensão entre o bloco de poder euro-americano.
O núcleo do capitalismo parece rachado.
Levando em conta que o plano de expansão da aliança militar da Otan para a Ucrânia sequer foi originalmente dos europeus – que, ainda por cima, arcaram com os piores efeitos da guerra –, o euro-chilique produziu sim alguma surpresa. Por que estariam os europeus lutando contra si como se por si fosse? Quais interesses estão realmente em jogo? Ou seria o caso de indagarmos sobre as coordenadas dessa nova servidão voluntária?
Pelo prisma da luta de classes, dificilmente existe o que se possa chamar de um “interesse europeu” – ou existe tanto quanto a vontade geral, isto é, a não ser como uma máscara de teatro. Mas quem seriam os atores? A partir daí, é possível iniciar essa conversa, tendo em vista a luta política dentro da própria Europa, entre facções liberais contra a extrema direita, o que também é uma disputa, a partir da Europa, da opinião pública americana.
A política europeia ainda como um grande campo democratóide
Especialistas costumam dizer que se fossem europeus, políticos americanos correligionários do Partido Democrata como Alexandra Ocasio-Cortez e Joe Biden estariam em partidos distintos. Essa avaliação é, em princípio, verdadeira, muito embora não alcance o seguinte: sim, na Europa eles estariam em partidos diferentes, mas ainda seriam do mesmo campo político – que, no caso, é o establishment político europeu, de corte liberal.
Isso se demonstra pela forma como a recíproca é verdadeira: os principais partidos da Alemanha, por exemplo, seriam alas do Partido Democrata. Uma prova disso é que os alemães recentemente elegeram os democratas-cristãos no lugar dos social-democratas, mas não só os vencidos vão ser sócios minoritários da futura coalizão como, ainda, o programa a ser executado, em grande medida, foi elaborado pelos derrotados ainda em 2024.
O novo e o velho governo alemão – que, em parte, é o mesmo – igualmente compartilharam de concordâncias sobre os grandes temas que, não sejamos desmemoriados, levaram o país deles à atual crise: o pesado apoio à Ucrânia, mas também o funesto suporte militar a Israel no contexto do genocídio de Gaza. Ainda, o compromisso com a austeridade foi igualmente comum, sendo que a saída dela foi conjunta e se dará mediante um suposto rearmamento.
Quem está fora das diferenças irrelevantes entre democratas-cristãos, social-democratas, liberal-democratas, verdes e, talvez, o próprio Linke – enquanto grilo falante do regime – é o Alternativa pela Alemanha (AfD, em alemão), que performa a posição do Partido Republicano – e além disso, apenas o bloco de Sahra Wagenknecht, que não conseguiu assento no Parlamento, mas tomava posições de esquerda anti-establishment.
A diferença entre “democratas” e “republicanos” na Alemanha, na verdade, é que a Europa está longe de estar polarizada como os Estados Unidos. Ela é confortavelmente “democrata”, com o fenômeno alemão se reproduzindo em quase toda parte, salvo na Itália, onde o bloco “republicano” é maior – ou na França, onde ainda existe uma esquerda digna desse nome, assombrando euro-republicanos e euro-democratas.
A disputa pelos olhares do Pai-Patrão
A Europa, com pouquíssimas forças a defender posições jurássicas como a dos trabalhadores e dos oprimidos em geral, vê uma polaridade assimétrica: o gigantesco campo liberal hegemônico contra seus concorrentes minoritários, mas em franca ascensão, na extrema direita, disputando os mesmos olhares e se constituindo como modos diferentes de expressar os interesses da elite econômica europeia – o que, um dia, já foi chamado de burguesia.
Na França, onde se pode fazer a honrosa exceção de haver uma esquerda real de massas, a disputa entre os liberais macronistas contra a extrema direita da madame Le Pen, igualmente, tem essas feições; de um lado, Macron como homem orgânico dos banqueiros, mas Le Pen como uma cada vez mais domesticada peça do capitalismo financeiro, inclusive com uma espécie de Paulo Guedes a tiracolo.
Voltando à Alemanha, as generosas doações da elite econômica à AfD são, em regra, colocadas em segundo plano em comparação às narrativas do “voto da Alemanha Oriental” ou do “voto dos mais pobres”, como se isso fosse a questão – e não que se trata de um partido votado pelos pobres, mas financiado pelos ricos, cuja origem é a estrutura capitalista da Alemanha Ocidental, que persiste pois não houve “reunificação”, mas anexação, do Leste.
Aí começamos a chegar perto da verdade, com a questão ucraniana como ponto de honra da disputa entre liberais e a extrema direita, uma vez que eles competem pelos menos financiadores e por dirigir o mesmo projeto. Assim, o assunto deixa de ser “a Rússia”, mas a projeção que aquele país ocupa dentro da ideologia dos regimes europeus, e consequentemente na ilusão das massas.
O ponto perigoso disso é que, para o establishment europeu, a guerra na Ucrânia se torna uma mera virtualidade, uma função da disputa política interna, o que ignora, em grande medida, as variáveis destrutivas de um conflito dessas proporções. Ironicamente, é a extrema direita que levanta, ao seu modo, propostas de interrupção do confronto, em uma inversão de papéis históricos: a economia de guerra hoje não lhe interessa.
O futuro estratégico da Europa
Quando Ursula von der Leyen, a onipresente líder europeia eleita por ninguém, acena com o rearmamento europeu, ela tem um problema concreto sobre o que isso significa e quais as consequências, inclusive sobre quem irá à linha de frente. Descendente tanto da velha elite germânica quanto dos escravagistas do Sul dos Estados Unidos, de quem ela já chegou a usar o sobrenome para se camuflar em Londres, von der Leyen é um personagem e tanto.
O blefe de von der Leyen parece frágil, uma vez que, além da Europa não dispor de canais seguros de fornecimento energético – ainda mais porque resolveu brigar com a Rússia, antes uma parceira sua na área –, ela tampouco educou suas sociedades, principalmente nos abastados países do Oeste, para um estado de mobilização para a guerra, o que, por sinal, não faria sentido algum, nem é desejado por ninguém.
Mas esse tipo de recado chega rapidamente, de um modo bem peculiar, à Europa pobre, que sofreria os primeiros choques de um eventual conflito, e de onde possivelmente saíram as primeiras tropas. E isso não é só apenas sobre Eslováquia e Hungria, que operam contra essa guerra há muito, mas também chega à Polônia e, inclusive, à Itália, cuja líder de extrema direita já falou um “não com as minhas tropas”.
Enquanto o presidente russo Vladimir Putin se esforça para dizer o óbvio – que não pretende invadir a Europa –, isso tampouco importa aos europeus, cujos líderes declaradamente mentiram para os russos, descumprindo acordos de paz anteriores. Dessa incapacidade crônica em cumprir a palavra se tornar um avanço dos eurolíderes sobre a Rússia, são mais outros quinhentos.
A série de tropeços e indecisões dos europeus, portanto, é claro, só pode dar certo se influenciar os rumos internos dos Estados Unidos. Do contrário, veríamos uma Europa mais estagnada ainda, ou simplesmente com o poder tomado pela extrema direita, que chegaria por meio de em uma política de substituição de lideranças bem provável. Nada disso tem a ver com “a Europa”, mas com a sobrevivência política dos seus atuais dirigentes.
Autor: Hugo Albuquerque (jurista e editor da Autonomia Literária).
Fonte: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/como-os-liberais-estao-levando-a-europa-para-o-abismo/