Dado que o pensamento supremacista baliza o judaísmo, e o judaísmo baliza o Estado de Israel, só por aí já dá para saber que a conversa de dois Estados é enrolação, pois, no que depender de Israel, os palestinos não terão nenhum Estado.
Israel Shahak (1933 – 2001) foi um judeu polonês sobrevivente do Holocausto e do gueto de Varsóvia que viveu sua vida adulta em Israel. Seu sobrenome, hebraico em plena Polônia, se explica por um dado relevante: seus pais eram sionistas, e trocaram o sobrenome iídiche Himmelstaub pelo hebraico Shahak. Isso é comum entre sionistas: a família Netayahu era Mileikowsky; Ben-Gurion nasceu Grün; Golda Meir era Golda Mabovitch.
E Israel Shahak, a seu turno, era antissionista de um jeito bem mais radical que a esquerda atual. Em seu livro História judaica, religião judaica: O peso de peso de três mil anos, Shahak defende que o judaísmo, tal como existe hoje e desde a adoção do Talmud, é um problema em si mesmo, pois é totalitário e supremacista.
O livro é originalmente uma série de artigos de jornal na década de 1990 movidos pelo seguinte acontecimento: em Israel, na década de 1960, um gentio desmaiou durante o shabbat e um judeu ortodoxo não autorizou o uso do telefone para chamar a ambulância. Os judeus não chamaram porque não é lícito violar o shabbat para salvar a vida de um gentio – para salvar a vida de um judeu, pode. Shahak testemunhou o fato e causou uma série de polêmicas no Haaretz.
Esse acontecimento é algo muito importante para entendermos a forma como Israel pensa sua política. Shahak nos convence que tanto o sionismo dito secular, como o sionismo religioso, são norteados pelo Talmud.
O opúsculo de Shahak inclui uma breve história do judaísmo. O que vale destacar é: desde o Talmud da Babilônia, a letra do Velho Testamento (ou Torá) perde a relevância porque o que importa é a interpretação estabelecida pelos rabinos no Talmud. Essa interpretação faz com que a ética do Velho Testamento se altere por completo. O “próximo”, por exemplo, deve ser interpretado como “o judeu”; considera-se que o gentio nunca é o próximo do judeu. Assim, todos os imperativos éticos universalistas do Velho Testamento são convertidos primeiro numa norma de conduta intra-judaica; e, como consequência lógica, há um campo da ética vago (a ética das relações entre gentios e judeus), a ser preenchido pela interpretação dos rabinos.
O mandamento “não cobiçarás a mulher do próximo”, por exemplo, passa a significar que o judeu não deve cobiçar a mulher de outro judeu. Sobre o judeu cobiçar a mulher do gentio, nada é dito. Assim, os rabinos puderam vedar o relacionamento (qualquer relacionamento) entre judeu e gentia por outras vias: comparando-o à zoofilia e punindo-o como um desvio. Isso quer dizer não só que o judeu não deve cobiçar a esposa do gentio, como também que o judeu não pode se casar com uma gentia, assim como um homem não pode se casar com uma cabra. Mas se dificilmente encontramos um corpo jurídico disposto a punir a cabra, o mesmo não se dá com as mulheres: “Se um judeu praticar o coito com uma mulher gentia, seja ela uma criança de três anos ou uma adulta, seja casada ou solteira, e mesmo que ele seja um menor com nove anos e um dia – como teve coito voluntário com ela, ela deve ser morta, como é o caso de um animal, porque por intermédio dela o, judeu meteu-se em sarilhos.” Isto é Maimônides.
Essa interpretação da palavra “próximo” vale também para “homem”, que é considerado sinônimo de judeu. O gentio, de fato, é algo análogo a um animal. Toda vez que um sionista propagandear uma frase que soe humanista, é bom lembrar desse peculiar glossário de origem rabínica. Pegar um Talmud para ler não adianta, a menos que se saiba hebraico, pois, segundo Shahak, as traduções do Talmud contêm deturpações feitas para não irritar os gentios. Essas deturpações são especialmente importantes para ocultar o que os rabinos pensam de Jesus Cristo e dos cristãos, que são considerados inferiores aos muçulmanos.
Em questões doutrinárias, Shahak cita muito o Talmud e Maimônides. A questão ética mais elementar é a da maneira como os rabinos olham para a vida gentia: segundo as fontes recolhidas por Shahak, é dever do judeu não ajudar o gentio caso esteja correndo risco de vida, a menos que o fato de os judeus deixarem o gentio morrer cause um ódio que ponha em risco a vida dos judeus. É proibido empurrar um gentio para dentro de um poço, mas é proibido também içá-lo para fora, salvando-lhe a vida. No entanto, se os gentios perceberem que os judeus os deixam morrer, isso gerará ódio contra e colocará vidas judaicas em risco. Isso acontece em qualquer lugar onde os judeus não sejam maioria. Há, portanto, uma espécie de judaísmo de fachada, para relações públicas, e um judaísmo explícito que vigora só em Israel.
Esse preceito gerou muito debate na medicina judaica – que não é nada hipocrática. Um tópico muito discutido é o da gentia grávida no shabbat. Uma parteira judia e um médico judeu podem usar o shabat como pretexto para enganar os gentios e não ir acudi-la, mesmo que porventura o atendimento não violasse nenhuma regra do shabbat. Para que não restem dúvidas sobre a natureza genocida dessas diretrizes, aceita-se que um judeu acuda uma gentia grávida desde que faça a dinheiro, e que haja outro médico capaz de salvar a vida. Afinal, seria uma lástima que um gentio e não um judeu deixasse de ganhar dinheiro. Assim, em primeiro lugar vem a morte da grávida, em segundo depois o dinheiro do judeu.
Pois bem, dado que esse pensamento supremacista baliza o judaísmo, e o judaísmo baliza o Estado de Israel, só por aí já dá para saber (como argumenta Shahak) que a conversa de dois Estados é enrolação, pois, no que depender de Israel, os palestinos não terão nenhum Estado. Shahak mostra ainda como os mais ferrenhos antissionistas não deixam de ter uma visão rósea do Estado de Israel: ele não admite bantustões, nem é imperialista.
Vejamos bem: uma típica potência imperialista coopta elites locais e usa-as para governar segundo os seus desígnios. Os próprios vizinhos de Israel são um testemunho disso, já que o Império Britânico governou os árabes, em vez de pretender cometer limpeza étnica. Israel não governa os árabes; tenta, em vez disso, eliminá-los, seja matando ou expulsando.
Quanto aos bantustões, i.e., os pseudo-países dos negros sob tutela da África do Sul, o fato é que a própria intenção de criar países de fachada levava à criação de bandeiras e de um nacionalismo artificiais. Já os palestinos não têm direito a nenhuma manifestação de nacionalidade. O sionismo religioso é influente o bastante em Israel a ponto de, num governo laico, causar incidente diplomático com a eterna aliada Jordânia. Segundo explica Shahak, em 1974, Israel tinha a intenção de frear o reconhecimento da OLP como representação palestina. Arranja-se um encontro com o rei da Jordânia na Cisjordânia, onde seria recebido por um governante árabe local. A recepção teria uma porção de bandeiras jordanianas e israelenses. A ala religiosa chiou, porque não se deve portar nenhuma bandeira estrangeira em Eretz Israel, o rei sentiu a desfeita e reconheceu a OLP.
O livro de Shahak é um opúsculo sucinto e com muita informação relevante. Este é um pequeno recorte, e a leitura da obra é altamente recomendável.
Autora: Bruna Frascolla - historiadora da filosofia, doutora pela UFBA, e ensaísta.
Fonte: https://strategic-culture.su/news/2024/12/06/segundo-israel-shahak-proprio-judaismo-supremacista/