A recente visita de António Costa a Kiev, já empossado como Presidente do Conselho Europeu, marca um ponto baixo na trajetória de um político que, apesar de se proclamar socialista, parece cada vez mais distante dos princípios que deveriam fundamentar tal ideologia. Ao abraçar Volodymyr Zelensky, que atualmente governa sem mandato presidencial legítimo sob o pretexto de uma lei marcial autoimposta, Costa não apenas valida implicitamente a erosão dos valores democráticos, mas também perpetua uma abordagem europeia enviesada e subserviente aos interesses da NATO e dos Estados Unidos.
Quando Mário Soares, assumiu politicas que colocavam o "socialismo na gaveta" para garantir a estabilidade democrática de Portugal, estava, ao menos, a lidar com uma conjuntura nacional crítica, onde o equilíbrio de poderes e a construção de um novo regime exigiam compromissos. Contudo, as ações de António Costa não podem sequer ser justificadas por tal pragmatismo histórico. Ao contrário, a sua atitude reflete um alinhamento cego e acrítico com uma política externa que perpetua conflitos, em vez de buscar soluções negociadas. Costa vai além de guardar o socialismo: ele desfaz-se dele, abraçando uma lógica neoliberal e militarista, disfarçada de solidariedade europeia.
Ao associar-se tão calorosamente a Zelensky, Costa parece ignorar que a verdadeira representatividade democrática reside na soberania popular, manifestada por meio de eleições livres. O argumento da lei marcial para justificar a suspensão indefinida de eleições na Ucrânia pode até ter apelo em cenários de emergência, mas perde força diante de uma prolongada ausência de mecanismos que garantam a voz do povo. Uma União Europeia que se pretende defensora de valores democráticos deveria adotar uma postura mais crítica e exigente, em vez de abraçar lideranças que se afastam de tais princípios.
A atitude de Costa reforça a continuidade de uma política externa europeia que ignora as raízes do conflito no Donbass, iniciado muito antes da invasão russa de 2022. Desde 2014, as populações destas regiões foram vítimas de um conflito que poderia ter sido resolvido por meio do diálogo e do respeito pelo direito à autodeterminação. No entanto, a NATO e os seus aliados insistiram numa estratégia de expansão que, em última análise, desestabilizou ainda mais a região e pavimentou o caminho para a guerra atual.
Ao alinhar-se de forma incondicional a essa lógica, Costa demonstra uma falta de autonomia política, revelando-se um peão num jogo geopolítico maior. As suas ações não apenas minam qualquer possibilidade de mediação europeia independente, mas também reforçam a percepção de que a União Europeia é, muitas vezes, uma extensão dos interesses norte-americanos.
Em vez de abraçar figuras que perderam a sua legitimidade democrática, a diplomacia europeia deveria ser marcada por formalidades que reflitam prudência e equilíbrio. A postura de António Costa, no entanto, simboliza a abdicação de uma oportunidade de liderar com uma voz crítica e construtiva, optando por reforçar o status quo belicista.
António Costa, que ascendeu politicamente sob o manto de um socialismo moderado, parece ter ultrapassado o seu antecessor, Mário Soares, na renúncia aos ideais que deveriam guiar o seu caminho. A sua atuação como líder da Comissão Europeia sugere não apenas um distanciamento das raízes socialistas, mas também uma perigosa conivência com a perpetuação de conflitos, a erosão democrática e a submissão a interesses alheios à soberania europeia. Em vez de representar uma nova era de equilíbrio e autonomia para a Europa, Costa reforça as piores tendências de uma política externa europeia decadente e desprovida de visão.
Autor: João Gomes (Publicado no Facebook)