A Ucrânia anunciou com pompa o nascimento do seu Flamingo: um míssil de 3.000 quilómetros de alcance, construído com nove meses de urgência, ajudas discretas do Ocidente e a esperança declarada de que mudará o rumo da guerra. É uma ave rara, cor-de-rosa no marketing e negra no propósito. Mas será flamingo… ou cegonha sem bebé?
Do ponto de vista técnico, impressiona. Ogiva de mais de uma tonelada, alcance capaz de assustar Moscovo, Kazan ou até alvos discretos nos Urais. Na teoria, altera a equação. Na prática, o que altera é o calendário: um míssil destes só muda o equilíbrio se for produzido em série, aos milhares. E Kiev, apesar da retórica industrial - um por dia, sete por dia, trinta por mês - continua dependente de fábricas vulneráveis, redes elétricas frágeis e cadeias logísticas que um satélite russo pode seguir como quem espreita migalhas num chão de cozinha.
Do outro lado, Moscovo não dorme. O Kremlin já provou, com ataques a fábricas e refinarias ucranianas, que sabe onde estão as linhas de montagem e que tem hipótese de destruir. Cada Flamingo que levantar voo pode ser seguido por uma chuva de mísseis russos sobre Lviv, Dnipro ou Kharkiv. É a velha lei da guerra: cada inovação estratégica nasce com uma contra resposta ainda mais brutal.
E aqui entra o Ocidente. Os Estados Unidos, cansados ou distraídos, recuam para um papel minimalista, de manual de instruções sem pilhas. A Europa, empurrada para o protagonismo, promete centenas de milhar de milhões em planos com nomes sonoros - “Readiness 2030”, “Sky Shield” - mas ainda tropeça em vetos, burocracias e divergências nacionais. No terreno, o soldado ucraniano continua a esperar que as promessas se materializem antes de ser varrido por drones e artilharia russos.
O Flamingo pode, de facto, voar longe. Pode até bater em alvos estratégicos e provocar engasgos na logística russa. Mas sozinho, sem uma nuvem inteira de congéneres, não muda o clima da guerra. O risco é que se transforme numa cegonha sem bebé: um voo raro, celebrado em vídeo e propaganda, mas sem fruto duradouro para um país exausto.
E assim, com sarcasmo triste, resta perguntar: não estaremos a assistir ao último voo destas aves raras antes de o mapa se redesenhar - não com asas largas, mas com fronteiras mais curtas? O Flamingo, por mais vistoso que seja, talvez só anuncie a dolorosa metamorfose da Ucrânia: de nação plena a Estado reduzido, sobrevivente mas mutilado.
Autor: João Gomes In Facebook