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Para além das tarifas, a disputa está na cognição
Por Administrador
Publicado em 18/07/2025 10:09
Novidades

Autoras: Isabela Rocha e Camila Modanez

 

 

O Brasil, que destinou R$ 23 bilhões às Big Techs nos últimos anos, é agora ao mesmo tempo cliente e alvo. Cliente, porque continua renovando contratos de licenças, nuvem e serviços críticos com essas empresas. Alvo, porque ousou discutir regulação, proteger dados sensíveis, julgar um ex-presidente por tentativa de golpe de Estado e exigir transparência em plataformas que, hoje, são braços do Departamento de Defesa dos EUA.

 

Publicamos semana passada, em parceria com a USP e a UnB, um estudo mapeando os gastos do setor público brasileiro, nos níveis federal, estadual e municipal, com as Big Techs. O valor nominal foi de R$ 23 bilhões entre 2014 e 2025, gastos em contratos de licenças, serviços em nuvem e aplicações de segurança oferecidos por empresas estrangeiras. Este montante seria o suficiente para erguer 86 data centers Tier 3 de 5 MW, capazes de hospedar sistemas críticos do Estado, garantir soberania sobre dados sensíveis e operar serviços públicos com segurança, redundância e alta disponibilidade. Já com o que foi gasto apenas no ano passado – R$ 10 bilhões de reais – poderíamos ter financiado bolsas de pós-graduação para todos os mestrandos e doutorandos do país ou manter uma universidade do porte da UnB em total funcionamento por mais de quatro anos. 

 

Esse volume de recursos canalizado para empresas sediadas majoritariamente nos Estados Unidos não é neutro. Ele insere o Brasil num circuito de dependência tecnológica que opera sob a lógica extraterritorial do Cloud Act, permitindo que dados de cidadãos, sistemas públicos e até informações sensíveis de segurança nacional sejam acessados legalmente por agências norte-americanas. O Cloud Act, aprovado em 2018, é uma lei dos Estados Unidos que obriga empresas de tecnologia sediadas no país a fornecerem dados armazenados em seus servidores, mesmo que localizados fora do território norte-americano, sempre que requisitados por autoridades dos Estados Unidos. Isso significa que, mesmo quando o Brasil contrata serviços em nuvem que operam fisicamente no país, os dados seguem vulneráveis à jurisdição e à vigilância de Washington, sem necessidade de autorização judicial brasileira. Trata-se de uma das primeiras violações da soberania digital, mascarada por contratos técnicos e cláusulas contratuais padronizadas. 

 

Isso foi em 2018, quando o Brasil estava, pela primeira vez, diante de uma eleição presidencial profundamente mediada por plataformas digitais. A ascensão de candidaturas outsider, a propagação de desinformação em grupos de WhatsApp e o uso massivo de impulsionamento no Facebook marcaram um ponto de inflexão na relação entre tecnologia e política. A arquitetura algorítmica das plataformas moldou comportamentos, organizou redes de influência e favoreceu dinâmicas de polarização extrema, tudo isso operando sob regras opacas definidas fora do país e em corporações privadas. E aqui se consolidou o uso político das mídias sociais como principal canal de mobilização, campanha e ataque institucional, sem qualquer controle nacional sobre os fluxos de dados, os critérios de moderação ou a distribuição de conteúdos. 

 

De lá para cá, aprofundamos na dependência. Terceirizamos os sistemas internos do governo, e gastamos só com a Microsoft mais de R$ 3 bilhões. Muito mais do que meras licenças de Windows e do Office, nossa máquina pública está utilizando ferramentas de e-mail institucional, autenticação de servidores, armazenamento em nuvem, integração de dados e segurança digital – ou seja, o coração da infraestrutura pública – com infraestruturas norte americanas. Plataformas críticas para o funcionamento cotidiano de ministérios, tribunais, universidades, escolas, prefeituras e hospitais operam hoje sob contratos com grandes corporações estrangeiras. Até mesmo serviços essenciais como o envio de mensagens em sistemas de saúde, a organização de agendas públicas, a emissão de documentos e a gestão de sistemas educacionais são processados em servidores que não pertencem ao Estado brasileiro, com códigos-fonte obscurecidos e suporte técnico externo. 

 

Com a Oracle, gastamos mais de R$ 1 bilhão. Nessa corporação estão hospedados os bancos de dados que sustentam grandes plataformas governamentais, como sistemas de arrecadação, previdência, gestão fiscal, recursos humanos e administração tributária. São infraestruturas críticas que concentram informações sensíveis de milhões de brasileiros e operam o fluxo financeiro de toda a máquina pública. Isso significa que a espinha dorsal de diversas secretarias e ministérios, da Receita Federal ao INSS, passando por autarquias, tribunais e bancos públicos, depende de arquiteturas proprietárias estrangeiras para funcionar. A complexidade e a rigidez dos sistemas Oracle criam um cenário de aprisionamento tecnológico: uma vez contratada, sua substituição exige enormes custos de migração, requalificação de pessoal e reescrita de sistemas, perpetuando o cenário de dependência. 

 

Foram mais de R$ 900 milhões com a Google e a Red Hat cada. A primeira, responsável por serviços amplamente difundidos como Gmail institucional, Google Drive, Google Classroom e ferramentas de videoconferência, passou a operar como interface padrão de milhares de escolas públicas, universidades, repartições e serviços administrativos em todo o país. Já a Red Hat, subsidiária da IBM, fornece sistemas de virtualização, orquestração de servidores, contêineres e ambientes de desenvolvimento baseados em Linux corporativo, tecnologias fundamentais para rodar serviços públicos em ambientes virtualizados, especialmente aqueles relacionados à saúde, previdência e segurança pública. Ambas as corporações atuam na base invisível da operação digital do Estado, mediando desde o acesso a prontuários eletrônicos até o funcionamento de plataformas de ensino e gestão de pessoal. São estruturas que, uma vez integradas, exigem atualizações, licenças e suporte técnico permanentes, aprofundando a captura institucional do Estado brasileiro por infraestruturas privadas, opacas e exógenas. 

 

Digitalizamos o Estado fora do Estado. Arriscamos, diariamente, apagões operacionais, vazamentos de dados e a perda de controle sobre funções administrativas básicas. 

No início do ano, chamamos de Meta-Trumpismo a aliança entre a Big Tech e o presidente Donald Trump. Com o retorno de Trump à presidência, os gigantes monopolistas da tecnologia alinharam-se a uma estratégia de poder que mistura pressão empresarial, algoritmos de propaganda e respaldo estatal. Recentemente, o cargo de tenente coronel foi oferecido a executivos da Palantir, da Anduril, da OpenAi, e, claro, da Meta como parte da criação do Detachment 201, uma unidade da reserva do Exército dos Estados Unidos composta por líderes do setor tecnológico. A medida foi anunciada oficialmente em junho de 2025 pelo Departamento de Defesa, consolidando o que antes parecia improvável: a militarização formal das Big Techs dentro da estrutura de segurança nacional norte-americana.

 

Para quem não conhece, Palantir e Anduril são duas das principais empresas do chamado complexo militar-digital norte-americano. A Palantir, fundada com financiamento da CIA, é especializada em integrar e analisar grandes volumes de dados para fins de vigilância, inteligência e policiamento, e seus sistemas já foram usados para rastreamento de migrantes, vigilância de dissidentes e operações militares classificadas. Já a Anduril desenvolve drones autônomos, torres de vigilância automatizadas, sensores de combate e plataformas de IA aplicadas diretamente a operações de fronteira e guerra. Ambas operam na lógica da tecnologia como força de dissuasão e defendem abertamente o uso da Inteligência Artificial como instrumento de superioridade militar. 

 

Finalmente, chegamos aos mais recentes desdobramentos. Trump, agora já no exercício do segundo mandato, publicou em sua própria plataforma, a Truth Social, uma carta endereçada diretamente ao governo brasileiro, anunciando a imposição de uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros a partir de 1º de agosto de 2025. A justificativa? A suposta perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a “censura secreta e ilegal” contra empresas norte-americanas de tecnologia. O alvo direto dessa narrativa são as decisões do STF, especialmente as ações do ministro Alexandre de Moraes no combate à desinformação e à instrumentalização das plataformas digitais para fins antidemocráticos. Para Trump, a regulação judicial brasileira, que inclui remoções de conteúdo, suspensões de contas e pedidos de moderação ativa de plataformas, representa uma afronta à liberdade de expressão e um ataque aos interesses comerciais dos Estados Unidos. 

 

Além disso, Trump invoca a Seção 301 da Trade Act de 1974 para ameaçar com novas medidas punitivas qualquer tentativa de regulação sobre plataformas digitais, exigência de hospedagem local de dados, ou regras sobre transparência algorítmica. A ameaça comercial se torna, aqui, uma forma de proteger diretamente as Big Techs, agora parte oficial do aparato de segurança nacional. Na prática, qualquer esforço brasileiro por Soberania Digital passa a ser interpretado como um gesto geopolítico hostil. 

 

Se consolida a nova fase do Meta-Trumpismo: um regime de pressão transnacional em que algoritmos, tarifas, tratados e doutrinas militares operam de forma coordenada para garantir que a infraestrutura informacional global permaneça sob controle norte-americano, mesmo que isso implique ameaçar a economia de seus próprios parceiros comerciais. O Brasil, que destinou R$ 23 bilhões às Big Techs nos últimos anos, é agora ao mesmo tempo cliente e alvo. Cliente, porque continua renovando contratos de licenças, nuvem e serviços críticos com essas empresas. Alvo, porque ousou discutir regulação, proteger dados sensíveis, julgar um ex-presidente por tentativa de golpe de Estado e exigir transparência em plataformas que, hoje, são braços do Departamento de Defesa dos EUA. 

 

O que está em jogo não é apenas o preço da soja, do minério ou da carne. É a capacidade do Brasil de defender sua Soberania em um cenário em que a guerra já não se dá apenas por tanques ou mísseis, mas por dados, plataformas e controle informacional. Da possibilidade de um país do Sul Global de garantir a segurança de seus sistemas estratégicos, proteger sua infraestrutura crítica e preservar a autoridade de suas instituições frente a interferências externas. 

 

E é justamente nesse contexto que entra em cena um conceito cada vez mais central para entender a ofensiva em curso: as Operações Psicológicas, ou PsyOps. Longe de serem apenas instrumentos militares tradicionais, as PsyOps hoje operam por meio de redes sociais, manipulação algorítmica, campanhas de desinformação e engenharia de percepção, moldando a opinião pública, deslegitimando instituições e estimulando reações políticas convenientes a interesses externos. E, além de deterem todo comportamento social do brasileiro, uma vez que as plataformas usadas cotidianamente pelo brasileiro, como o WhatsApp e o Youtube, da Meta e da Google, respectivamente, a Big Tech, hoje parte do aparato militar norte americano, também detém nossas informações sensíveis: localização, hábitos de consumo, redes de relacionamento, preferências políticas, histórico de navegação, biometria e dados institucionais públicos. 

Essa arquitetura de vigilância, operando sob lógicas algorítmicas não auditáveis, permite às Big Techs não apenas monetizar a atenção brasileira, mas também prever comportamentos coletivos, interferir na circulação de conteúdos e testar reações sociais em escala nacional. Quando combinada com estruturas militares, essa capacidade de monitoramento e intervenção se transforma numa arma estratégica. E o alvo, nesse caso, não é um território físico, mas a cognição pública nacional: a forma como os brasileiros percebem suas instituições, os rumos da política, o funcionamento da Justiça e até sua própria noção de país. 

 

Estamos diante de uma nova camada de guerra híbrida na qual empresas estrangeiras operam, em tempo real, sobre a infraestrutura mental de um Estado soberano. As PsyOps contemporâneas não precisam mais de panfletos, infiltrações ou canais clandestinos, elas acontecem no feed, no WhatsApp da família, no autoplay do YouTube. E, quando combinadas à chantagem comercial, elas servem a um objetivo maior: inviabilizar qualquer esforço de autonomia política, regulatória ou informacional por parte do Brasil. 

 

Enfrentar esse cenário exige mais do que políticas públicas: exige uma doutrina nacional de Defesa Cognitiva e um compromisso intransigente com nossa Soberania. Porque o que está em jogo não é apenas a economia ou a tecnologia, é a consciência coletiva, é o direito de ser, pensar e decidir como povo brasileiro. 

 

Isabela Rocha é mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL UnB), e coordena a Linha de Pesquisa Métodos Computacionais para Ciencia Política e afins do Laboratório de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP IPOL UnB). Atualmente coordena o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB) e preside o Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, visando o desenvolvimento de infraestrutura tecnológica íntegra e soberana no Brasil, no Sul Global, nos países BRICS+, e no mundo. 

 

Camila Modanez é pós graduanda em Estratégia e Liderança Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e graduada em Engenharia Mecânica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É integrante do Grupo de Trabalho ‘Estratégia, Dados e Soberania’ do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB); é também Diretora de Projetos Estratégicos do iBRICS+, Instituto para a Integração Cultural e Desenvolvimento Econômico dos países BRICS+.  

 

 

Fonte: https://diplomatique.org.br/para-alem-das-tarifas-a-disputa-esta-na-cognicao/

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