Depois de muitas dezenas de milhares de mortos e 90% da população deslocada na Faixa de Gaza, a União Europeia reage com um documento inócuo e um silêncio ensurdecedor. A moral democrática da Comissão Europeia está em xeque.
A Europa já não finge. Diante de um dos episódios mais devastadores da história recente - com dezenas ou talvez centenas de milhar de civis mortos, a maioria mulheres e crianças, e 90% da população de Gaza forçada ao deslocamento - a resposta oficial da União Europeia resume-se a um relatório tímido que aponta, com eufemismo brutal, para “indícios” de violações por parte de Israel.
Sem propostas. Sem sanções. Sem suspensão do acordo comercial que mantém com Tel Aviv. Apenas palavras.
A chefe da diplomacia europeia, Kaja Kallas, entregou o que chamou de “opções” e “resultados”, mas o que se viu foi um documento sem dentes. Sem coragem. Sem urgência. A frase com que justificou a inação - “Suspender o acordo comercial não vai parar o massacre” - é talvez uma das mais cruéis declarações públicas de uma Europa que, diante do genocídio, escolheu o cálculo económico.
A Europa não está a ser neutra. Está a ser cúmplice.
Um silêncio bem repartido
A Hungria veta qualquer tentativa de sanção. A Alemanha, historicamente condicionada pela culpa, mantém o silêncio. A França oscila entre a indignação diplomática e a inércia. Apenas sete países - entre eles Portugal, Suécia, Bélgica e Finlândia - tiveram a dignidade de exigir o mínimo: o corte do comércio com os territórios ocupados. Mas são uma minoria, bloqueada por uma maioria complacente e paralisada por interesses.
Este duplo padrão europeu revela-se sem pudor. Enquanto sanciona, isola e condena outras nações por muito menos, a Comissão Europeia hesita em confrontar um aliado estratégico - mesmo diante de evidências de crimes de guerra documentados por organismos internacionais, incluindo as Nações Unidas.
A hipocrisia como política externa
A União Europeia foi erguida sobre a promessa de nunca mais permitir que o horror do século XX se repetisse. Direitos humanos, dignidade humana e solidariedade internacional foram seus pilares fundacionais. Hoje, esses valores são pisoteados sob o peso da conveniência política e do comércio livre.
Fala-se em valores, mas pratica-se a hipocrisia.
Como justificar que uma instituição que se apresenta ao mundo como bastião dos direitos humanos normalize, com frieza institucional, a morte em massa de civis? Como pode a mesma Comissão que defende sanções imediatas em nome da democracia noutros contextos, aceitar com indiferença o apartheid, os bombardeamentos indiscriminados e a limpeza étnica, quando estes partem de um aliado?
A responsabilidade é nossa
Não basta criticar. Urge exigir. Os cidadãos europeus, independentemente das suas orientações ideológicas ou partidárias, precisam de levantar a voz. Porque o que está em jogo não é apenas uma política externa errada - é a alma da própria Europa.
Onde estão os protestos massivos? Onde estão os parlamentos nacionais? Onde está a coragem de dizer que esta Europa, esta Comissão, este silêncio, não nos representa?
Se a história da Europa significa alguma coisa - se Auschwitz, Sarajevo ou Srebrenica nos ensinaram algo - então é imperativo agir. A omissão já não é neutralidade. É conivência. E a conivência, diante do genocídio, é um crime.
A Europa precisa urgentemente de lembrar-se de si própria - e de o fazer por pressão dos que a vivem, trabalham e acreditam nela todos os dias.
Porque quando o comércio livre se sobrepõe à vida humana, não é apenas Gaza que morre. É a própria ideia de Europa.
João Gomes In facebook