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A Venezuela e o caminho das urnas para o socialismo
Por Administrador
Publicado em 08/05/2025 10:09
Novidades

Desde as disputadas eleições presidenciais na Venezuela em julho de 2024, o governo não parou de convocar consultas populares, eleições de juízes de paz, projetos comunitários em 2024 e, em abril deste ano, uma nova consulta comunitária, e em maio a eleição de governadores e legisladores para as Assembleias Nacional e Estadual.

 

As formas de acesso ao poder sempre foram um debate no seio da esquerda, que teve a sua praxis nas experiências de Cuba, da Europa de Leste, da Ásia, de África e outras, passando pelo conflito armado e pelo caminho das eleições no Chile, onde o socialista Salvador Allende foi eleito nos anos 1970.


Se nos guiarmos pelas constantes convocatórias de eleições do governo de Hugo Chávez, primeiro, e de Nicolás Maduro, atualmente, sem ser uma repetição mecânica, poder-se-ia dizer que se assemelha mais ao modelo chileno, fazendo uma comparação muito grosseira. Mas, ao contrário do modelo chileno, que foi devastado pela repressão fascista criminosa durante o golpe de Estado do general Pinochet em 1973, a Venezuela resiste a muitas das medidas que foram tomadas contra o governo de Allende na altura (ver a série de documentários A Batalha do Chile). Pressão internacional da Casa Branca nos Estados Unidos, mobilizações e boicotes da oligarquia e dos seus grupos políticos de direita, escassez, ataques, bloqueio económico, medidas de isolamento regional, cerco informativo e campanhas mediáticas que distorcem a realidade.


O que torna o socialismo venezuelano peculiar é a resposta que viemos procurar, percorrendo as suas aldeias, falando com as suas gentes, ouvindo os seus militantes e simpatizantes, os seus devotos e detractores.

 

Nas ruas da Venezuela, Caracas


O tom de voz dos venezuelanos é inconfundível, embora rapidamente se note a diferença entre as vozes dos habitantes do leste e as de Caracas ou de outras regiões da Venezuela. Muitas expressões idiomáticas são partilhadas com a região, mais especificamente com a Colômbia, e há uma “batalha cultural” entre os países fronteiriços sobre qual é a melhor arepa, a colombiana ou a venezuelana. É melhor não se envolver.


A natureza venezuelana é tão deslumbrante como a sua cultura e a sua arquitetura, sobretudo a colonial, onde a presença espanhola sobressai, razão pela qual, nas palavras do poeta de Un recado a Simón, em homenagem a Simón Bolívar, “libertaste-nos de Espanha, mas não dos espanhóis”. Esta presença mestiça que gera um arco-íris de regiões e cidades com as suas particularidades está a ter uma componente comum baseada numa aposta do Comandante Hugo Chávez: apostar no Estado comunal, resgatando parte da experiência das comunas como ponto de referência na história do movimento popular venezuelano. Trata-se de um novo Estado comunal que não uniformiza a diversidade ao estilo soviético, mas que orienta um rumo a que chamam socialismo venezuelano e gera um estado de alma comum, um sentimento de pertença fecundado por um espírito de resistência animado pela investida dos sectores económicos do poder e da ingerência norte-americana.

 

As famílias comuns venezuelanas enfrentam os mesmos problemas que os povos do continente subjugado, em consequência da pilhagem, por pequenos grupos poderosos, das suas riquezas naturais, especialmente das suas reservas de ouro negro. No entanto, na sua forma ruidosa de se exprimirem, na sua forma caótica de se organizarem (tão ordenada e caótica como o trânsito em Caracas), encontraram um espaço onde a comunidade se está a impor à ordem institucional estabelecida, que há anos tem vindo a demonstrar as suas limitações. O tempo dirá se chegou o momento de estas pessoas exercerem a sua soberania e autonomia, deixando para trás as instituições do Estado burguês.

As experiências de consolidação da nova ordem comunal vão desde as comunas imersas no enorme Petare, a definição da comuna socialista de El Panal no bairro 23 de Enero, até às experiências de comunas rurais que estão a adquirir um papel de liderança na conquista da soberania alimentar.

Petare

 

É um dos cinco bairros mais populosos da América Latina, e esta espécie de “montanha de ticholos” domina a vista. Como pudemos constatar mais tarde, as filtrações de água funcionam como um “galinheiro” das casas situadas na parte alta da zona para as de baixo, com o risco quase iminente, nalgumas zonas, de um deslizamento de terras que pode arrastar parte das casas.

Sem nada a invejar das favelas brasileiras, mas tal como nas favelas, nem tudo é marginalidade e paraíso do desencanto. As comunidades organizadas participam no processo nacional de construção da autonomia comunal e do seu caminho particular para uma sociedade socialista.

No final de 2024, mais de 30.000 juízes de paz foram eleitos nas comunidades da Venezuela; são homens e mulheres simples que, com o poder de mediação conferido pela comunidade, interagem entre os habitantes e as instituições do Estado (ministérios e prefeituras), oferecendo soluções.

No caso da comuna de Gran Sucre, esta é composta por seis conselhos comunais que reúnem cerca de 4.500 famílias. Os juízes aí eleitos são apoiados pelos porta-vozes dos 54 comités técnicos existentes em cada conselho comunal, responsáveis pela saúde, terra, alimentação, segurança, habitat e outros.

 

O problema das condições de habitação causadas por infiltrações de água e a renovação de fachadas são tão importantes como a mediação em casos de violência doméstica e de género (neste último aspeto, uma direção a corrigir pela revolução é a situação em que a esmagadora participação ativa tem um rosto de mulher, mas os porta-vozes são homens).

O enorme diferencial das mulheres juízas de paz em relação aos membros da magistratura é o seu contacto e pertença à comunidade, o que lhes permite, no âmbito das suas competências, tomar decisões a partir de um conhecimento e de uma proximidade que não se consegue em tribunais judiciais distantes.


Maria, bendita sejais vós...ros

 

Os chefes de rua foram eleitos em 2019 para melhorar o sistema de distribuição de combos alimentares (sortido) e assim garantir que chegam às famílias. Este sistema funciona através dos Comités Locales de Abastecimiento y Producción (CLAP), que são comités de distribuição de alimentos subsidiados na Venezuela, promovidos pelo governo. O seu objetivo é garantir o acesso da população aos alimentos básicos, especialmente dos mais vulneráveis.

A contradição como força motriz


No próximo dia 25 de maio, 54 partidos políticos de toda a Venezuela vão disputar os lugares de 285 deputados da Assembleia Nacional, 250 deputados estaduais e 24 governadores. Dos 54 partidos de todo o espetro político, 36 são nacionais, 10 são regionais e 8 organizações indígenas, 3 nacionais e 5 regionais estão a concorrer.

 

Um total de 36 986 candidatos concorreram a estes lugares e 6 687 participantes foram selecionados como candidatos. Do total de candidatos, 53,93% eram homens e 46,07% mulheres.

Por seu lado, o Grande Pólo Patriótico Simón Bolívar é constituído, por um lado, por conselhos patrióticos que agrupam estas organizações em sectores específicos da população: mulheres, diversidade de género, camponeses, trabalhadores, economia popular, lutadores por uma habitação digna, organizações religiosas, profissionais e técnicos, organizações de migrantes, entre outros. Alguns dos grupos políticos que o compõem existem desde 2012 e outros foram criados recentemente; alguns desses grupos são o Partido Comunista da Venezuela (que detém a representação oficial desse partido desde agosto de 2023, após a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça que nomeou uma liderança ad hoc), Movimiento Tupamaro, Patria Para Todos, Unidad Popular Venezolana, Movimiento Futuro Venezuela, Movimiento Somos Venezuela, Unión Patriótica, Partido Hora, Partido Verde, entre outros.

María, como líder de rua, é responsável pela distribuição do saco de alimentos para 32 famílias do seu quarteirão, e ajuda a manter a sua comunidade organizada e informada; é também porta-voz da Mesa Técnica de Água, uma atividade indispensável para a alimentação e o saneamento. É também porta-voz da Mesa Técnica de Água, uma atividade indispensável para a alimentação e o saneamento.

 

Os militantes de base, tanto políticos como sociais, têm nuances com o processo que não escondem, e não há políticas governamentais para os silenciar. Pudemos falar com dirigentes dos vários grupos políticos de esquerda em Caracas e todos estão de acordo em defender o processo bolivariano e resistir ao avanço da ultradireita internacional, apelando à paz, tomando como referência os violentos ataques que a ultradireita venezuelana tem levado a cabo e o pedido de alguns dos seus dirigentes para que se apele a uma invasão militar ou a medidas de reforço do bloqueio económico, como pediu a dirigente neofascista Corina Machado. O facto é que qualquer processo irruptivo, com exemplos que vêm das profundezas da história, tem as suas próprias contradições, dotando a mudança revolucionária de um impulso e de travões próprios. Houve líderes no processo que se corromperam, praticaram actos de corrupção, burocratizaram algumas estruturas, confundiram liderança com messianismo, e diferentes forças políticas e sociais dentro do Chavismo lutaram e lutam contra este e outros males, desde os Chavistas “sem Maduro” até aos que vêem no atual presidente da Venezuela a continuidade do programa bolivariano.

O Leste, tão longe e tão perto


“O tempo está a favor dos pequenos, dos nus, dos esquecidos”, canta Silvio Rodríguez. Quando algumas vozes tresloucadas do republicanismo advertem que a Venezuela está a “sair do Ocidente”, ignoram ou tentam esconder a história dos povos da América Latina que fizeram uma opção pelo socialismo e que essa opção envolveu um processo de libertação nacional que implicou a rutura com a hegemonia dos Estados Unidos.

Levar adiante essa opção não era apenas uma opção ideológica, uma aventura no campo das ideias, mas implicava também levar adiante questões tão elementares como romper com a dependência da transferência de tecnologia, entre outras. Mas, não menos importante, ter um respaldo, um “guarda-chuva” que desencorajasse ou relativizasse a política norte-americana de agressão ou invasão do país que desrespeitasse a sua soberania.

Claro que esta é uma opção que implica fazer algumas definições, como num casal que decide separar-se: ou se separam ou estabelecem um acordo de coabitação, que é o que rapidamente definiram aqueles que sentem uma zona de conforto no estilo de vida americano e mesmo europeu, esquecendo a sua pertença a um continente mestiço, mulato, afro-descendente e subdesenvolvido, e renegando países das mesmas condições no Oceano Atlântico.

 

Muitos dos programas de habitação, abastecimento alimentar e tecnologia do povo venezuelano contaram com a cooperação do Irão, da China, da Rússia e do Vietname, que, por sua vez, fizeram alianças com nações das Caraíbas, da América, da Ásia e de África.

Talvez o “infanticídio do dólar” de Donald Trump confirme a sabedoria de olhar por cima do muro da hegemonia ocidental.



Autor: Ricardo Pose

 

Crédito da foto: Telesurtv.net

 

Fonte: https://www.telesurtv.net/opinion/venezuela-y-el-camino-de-las-urnas-al-socialismo/

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