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Tom Holland e o uso cristianismo contra o islão
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Publicado em 12/03/2025 por Administrador

Elogiar o liberalismo dos anglo-saxões como superior ao espírito militar teutónico é algo que tem um precedente cristão, racista e genocida.

 

Como já observei aqui nesta SCF, há uma concertação entre ateus nietzschianos e protestantes para defender que o cristianismo é meritório porque, como um raio em céu azul, propôs pela primeira vez uma moral humanitária que preza pelos fracos. A oposição nietzschiana entre o heroísmo viril dos pagãos e a “moral escrava” dos cristãos é elogiada em vez de lastimada.

Essa nova aliança entre ateus e protestantes é bem representada pela mudança de posicionamento de Richard Dawkins. Antes, o ateu mais chato do mundo vivia chamando cristãos de burros; agora, reconhece-lhes valor civilizacional… diante da ameaça muçulmana. O provável é que o ideólogo dessa aliança seja Tom Holland, um badalado historiador da BBC. Antes de ser moda, ele já defendia as virtudes civilizacionais do cristianismo – mas é claro que tampouco fazia isso gratuitamente, pois o pano de fundo já era a ameaça islâmica. Tom Holland também se dedica a caçar “antissemitas” em plena Inglaterra, ainda antes de 7 de outubro de 2023.

Observei também nesta SCF que o judaísmo passou por um processo curioso, que fez com que os judeus ateus, influenciados por evangélicos fundamentalistas, tomassem a dianteira da comunidade judaica e fizessem com que uma ideia herética se tornasse ortodoxa. A saber: a migração para a Terra Santa antes da chegada do Messias. No frigir dos ovos, o dispensacionalismo dos protestantes anglófonos passou a guiar a religião dos judeus, graças aos ateus do movimento sionista. Há uma simbiose entre o mundo protestante anglófono e o judaísmo. Assim, existe a possibilidade de essa parcela da cristandade ser liderada por ateus com objetivos políticos, do mesmo jeito que os judeus.

Li então Domínio: O cristianismo e a criação da mentalidade ocidental, obra de Tom Holland publicada em 2019, para ver como ele conta a história da cristandade ocidental.

Ele de fato apresenta o cristianismo como uma ruptura radical e permanente. Primeiro, foi uma ruptura não só com o paganismo de modo geral, mas também com os valores da sociedade romana. Ou seja, é como se toda a Antiguidade fosse composta por guerreiros implacáveis, até aparecer o cristianismo com sua “moral de escravo”. Acontece que Roma já era especial. Primeiro,  basta ler o De officiis de Cícero para descobrir que existiam deveres até do senhor para com o escravo, e era recomendável pagar-lhe pelo trabalho como se fosse livre. Segundo, se Roma for apresentada como mais uma sociedade implacável entre as outras, sem compaixão pelos fracos, como apresentar o horripilante México asteca e a infanticida Cartago? Roma viveu em guerra com Cartago até destruí-la e acabar com o sacrifício de crianças a Baal, que tanto escandalizava outras sociedades mediterrâneas da Antiguidade.

O cristianismo não era oposto a Roma. Justamente por rechaçar o sobrenatural, um ateu deveria considerar que, se o cristianismo surgiu na periferia do Império e o conquistou sem armas, deve ser o seu subproduto, em vez de ser uma força alienígena. Compare-se a conversão de Roma à conversão do México: a primeira foi desarmada e teve seu principal milagre longe do centro do poder e de testemunhas relevantes; a segunda foi armada e teve seu principal milagre em plena capital, com uma prova material ostensível e duradoura, sujeita até à inspeção da NASA.

Mas além de romper com Roma, Tom Holland vê o cristianismo como uma revolução permanente que rompe consigo própria o tempo inteiro. Assim, o maior diferencial desse historiador frente aos demais ateus de direita é que ele coloca o wokismo como uma consequência do cristianismo, em vez de tratá-lo como contrário ao espírito do Ocidente.

Holland está correto quanto ao wokismo vir do cristianismo, já que (como mostrei em detalhe aqui) o wokismo surgiu do seio da Igreja Unitarista, que é protestante e liberal. No entanto, essa não é a explicação que ele dá. Sua explicação consiste em apontar a reforma moral em defesa dos oprimidos como uma característica essencialmente cristã e dizer que o wokismo é uma continuidade disso. Esse argumento é a sequência de outro, que estabelece uma continuidade entre o catolicismo e o protestantismo na Inglaterra e entre o catolicismo e o iluminismo na França: os primeiros cristãos derrubavam ídolos pagãos, o Papa Gregório VII empreendeu uma ousada reforma que visava à depuração moral, o movimento iniciado por Lutero teve o mesmo ímpeto, e ao cabo tanto os puritanos ingleses quanto os iluministas franceses destruíram as imagens católicas com o fito de promover reformas morais. Para Tom Holland, então, cristianismo é revolução permanente. Isso é um erro. Ele toma uma característica do protestantismo, depois herdada pelo liberalismo, e a considera como essencial ao cristianismo. Afinal, só no cristianismo protestante inexiste o conceito de heresia.

A revolução permanente é incompatível com o conceito de progresso porque é inimiga do passado. Ora, quando Santo Agostinho aceitava a escravidão, ele não era um cristão que precisava da iluminação dos quacres abolicionistas elogiados por Tom Holland, que queimavam bíblias. Santo Agostinho era um homem do seu tempo e, como cristão, não admitiria que fosse dado qualquer tratamento a um escravo. Ter aceitado a escravidão não faz dele, aos olhos da esmagadora maioria dos cristãos de hoje, uma autoridade a ser destruída. Santo Agostinho e qualquer outro santo que tenha convivido com a escravidão não fez uma apologia dela. A própria noção de infalibilidade papal está de acordo com a possibilidade de progresso moral: se os papas do futuro vão fazer novas bulas e não vão corrigir os papas do passado, então ainda há coisas novas a serem estabelecidas. O Papa Gregório VII não tornou nenhum papa prévio falho. Já Lutero transformou toda a Igreja Católica numa diabólica conspiração de mentirosos. E os wokes tratam como Hitler qualquer um que diga que mulheres não têm pênis, ou seja, quase todo humano que já caminhou sobre a terra.

Voltemos para o México. Aprendemos que um remorso da Inglaterra foi não ter conseguido repetir na Índia o feito espanhol de converter ao cristianismo uma antiga civilização. A pressão partiu mais da população em geral do que da própria Coroa, que punha considerações mercantis em primeiro lugar, e essa cobrança foi feita por meio dos jornais: um cronista descrevia no jornal costumes terríveis, como o de incendiar viúvas no funeral dos maridos, e um clamor popular se seguia. Ocorreu-me que essa maneira errática e facilmente manipulável de tocar questões nacionais tornou-se comum com o estabelecimento de democracias liberais mundo afora.

Pois bem: em vez de converter os indianos ao cristianismo, os ingleses teriam, segundo convincentemente argumenta Holland, ensinado os indianos a se enxergarem e a se defenderem à maneira protestante: o hinduísmo é uma religião e, sendo uma religião, tem uma teologia; e, tendo uma teologia, argumenta que os hindus que queimam viúvas não são verdadeiros hindus, porque o hinduísmo foi falsificado num dado momento da história… Bom, o projeto puritano de fazer da Índia um país cristão resultou em a Índia se tornar uma democracia constitucional com pluralismo religioso. No frigir dos ovos, ser ocidental é isso para Holland. E o islamismo, ao contrário do judaísmo, coloca-se contra isso.

Segundo Holland, a grande vantagem propagandística do islamismo, capaz de converter cristãos ao surgir, é a reivindicação de que o Islã trazia leis prontas direto de Deus, enquanto que os cristãos eram abandonados à herança greco-romana e tinham de construir uma teologia, uma filosofia etc. Assim, diante do avanço do mundo ocidental, os muçulmanos se mantiveram com uma lei da época de Maomé e acabaram se tornando intérpretes do espírito da lei, isto é, passaram a raciocinar como protestantes. Mas aí apareceram os salafistas prontos para restaurar o islã e, novamente segundo Tom Holland, se assemelham à sangrenta Münster dos anabatistas. Ou seja, tudo é como o cristianismo; e, se tudo é como o cristianismo, nada é como o cristianismo. No entanto, ele nunca pinta os muçulmanos como piedosos, e até atribui paixões nietzschianas aos seus guerreiros.

No capítulo final, Tom Holland trata da nova postura de Dawkins, que prefere o som dos sinos da igreja ao brado de Allahu Akhbar. Retrata, também, como equivocada a tese do Fim da História, e apresenta como prova disso o fato de que George W. Bush dizia que o islã era a religião da paz. Ou seja, o problema não é Bush ter feito uma guerra contra o Iraque, mas sim ele ter errado quanto à real natureza do islamismo, que é belicista e não quer viver numa democracia liberal. Tom Holland é, de fato, um seguidor de Samuel Huntington e de sua teoria do choque de civilizações.

Eu não tenho conhecimento suficiente de história do islã para saber se o hábito de argumentar pelo espírito das leis é copiado dos protestantes, mas eu sei que o pluralismo tem precedentes antigos justamente nos impérios muçulmanos: basta ver a montanha de credos que convivem há mais de um milênio no Oriente Médio, a maior parte do tempo pacificamente, sob o Império Otomano. Se no Ocidente por muito tempo só houve os guetos judaicos divergindo do catolicismo, no Oriente o judaísmo era mais uma religião entre várias. Ou seja, faz mais sentido dizer que os protestantes se islamizaram do que que eles são a essência do cristianismo. (Quanto ao salafismo, de fato faz sentido enxergá-lo como uma repetição do protestantismo radical – e o financiamento de grupos salafistas é objeto de comentaristas de geopolítica e guerra híbrida.)

Por fim, eu gostaria de comentar um tipo de cristianismo que ele, em absoluto, não menciona: é o supremacismo calvinista. Holland fala do entusiasmo pela eugenia entre cristãos como uma coisa dos protestantes alemães da época de Hitler. No capítulo “Ciência”, ele fala das implicações morais e teológicas do darwinismo no século XIX sobre o mundo anglófono; trata de Carnegie, o milionário calvinista que se orgulhava da própria riqueza e patrocinava paleontólogos. No entanto, nenhuma palavra é dada sobre um teólogo calvinista muito importante: Josiah Strong, um dos pais do Evangelho Social. Ele elogiava os EUA como a pátria de uma nova raça mestra destinada a evoluir, conquistar o mundo e extinguir as raças inferiores (primeiro nas Américas, depois na África), segundo o plano divino de povoar o mundo com raça mais apta. Josiah Strong até explicava a origem da Reforma e do liberalismo por meio do racismo científico: as raças superiores são amantes da liberdade, o protestantismo surgiu entre saxões, o autoritarismo papal é coisa das raças latina e celta, e o protestantismo se aprimorou mais da perfeição entre os anglo-saxões, que são liberais. Isso está no décimo quarto capítulo de Our Country.

Ou seja, elogiar o liberalismo dos anglo-saxões como superior ao espírito militar teutônico é algo que tem um precedente cristão, racista e genocida. Como em propaganda dificilmente se inventa muita coisa, devemos trabalhar com a hipótese seguinte: a de que os ateus anglófonos estão tramando um enquadramento do cristianismo nos moldes supremacistas de Josiah Strong, pronto para aniquilar árabes inferiores diante do pretexto da ameaça islâmica.

 

Autora: Bruna Frascolla: historiadora da filosofia, doutora pela UFBA, e ensaísta.

 

Fonte: https://strategic-culture.su/news/2025/03/11/tom-holland-uso-cristianismo-contra-isla/

 



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