Uma instituição religiosa “purificadora da fé” ou um instrumento de repressão política e ideológica ao serviço das classes sociais poderosas?
A Inquisição Espanhola, fundada em 1478, não foi apenas uma ferramenta para preservar a ortodoxia religiosa, mas também um mecanismo político e económico ao serviço das classes dominantes. Este artigo analisa, numa perspetiva marxista, como esta instituição moldou a história e deixou uma marca profunda na sociedade espanhola que ainda hoje se pode perceber.
A Inquisição Espanhola, criada em 1478 pelos Reis Católicos, marcou uma das fases mais negras e complexas da história europeia.
Embora seja frequentemente apresentada como uma instituição destinada a salvaguardar a ortodoxia religiosa, analisada sob a perspectiva da historiografia marxista torna-se claro que os seus objectivos transcendiam o âmbito espiritual, desempenhando na verdade a função de um instrumento utilizado para consolidar e reforçar o poder da Monarquia.
Neste artigo tentaremos destacar como esta instituição se tornou uma poderosa ferramenta de controlo ideológico, económico e político e expor como as suas sombras conseguiram ser projetadas também na história contemporânea de Espanha.
CONSOLIDAÇÃO DO PODER MONÁRQUICO E DAS ELITES
Desde o seu início, a Inquisição Espanhola esteve directamente subordinada à Coroa, em contraste com outras inquisições europeias que respondiam principalmente ao Papa . Este carácter distintivo permitiu-lhe tornar-se um instrumento de centralização do poder e de consolidação da autoridade dos Reis Católicos. Através da perseguição de heresias como o judaísmo, o islamismo e o protestantismo, tentou- se unificar ideologicamente o reino, alinhando-o sob uma identidade nacional profundamente entrelaçada com o catolicismo.
Um dos casos mais emblemáticos foi o dos judeus convertidos. Embora oficialmente convertidos ao cristianismo, muitos continuaram a praticar secretamente os seus ritos e tradições. Estas práticas foram prosseguidas não só por razões religiosas , mas também pelo seu impacto económico. Os conversos, dedicados sobretudo ao comércio e às finanças, representavam um desafio à aristocracia fundiária. Processos como o da família Santa Fé em 1486 não só procuraram “purificar” a fé, como também eliminar a concorrência económica que ameaçava o monopólio das elites tradicionais.
FERRAMENTA DE REPRESSÃO E CONTROLO SOCIAL
A Inquisição Espanhola funcionou como um mecanismo de controlo social, incutindo o medo em todas as camadas da população.
Os métodos utilizados, que incluíam vigilância, denúncias anónimas e espionagem, fomentaram uma cultura de desconfiança que paralisou qualquer tentativa de resistência ou dissidência. Neste contexto, comunidades marginalizadas como os Mouriscos foram sujeitas a perseguições sistemáticas.
A vigilância estendeu-se a todas as áreas da vida quotidiana. A Inquisição utilizou o conceito de “purificação do sangue” como ferramenta de exclusão social, consolidando um sistema de castas que beneficiava os cristãos-velhos. Esta política não só restringiu o acesso a posições de poder, como também criou uma hierarquia rígida que perpetuou as desigualdades materiais.
O impacto desta repressão não se limitou à esfera cultural. Segundo o historiador Ricardo García Cárcel, a perseguição a diversas comunidades, despojadas das suas propriedades e obrigadas a abandonar as suas atividades produtivas, contribuiu para a estagnação económica de Espanha.
NEUTRALIZAÇÃO DE MOVIMENTOS DISSIDENTES
Da historiografia marxista interpreta-se que a Inquisição desempenhou um papel decisivo na desmobilização dos movimentos que poderiam alterar o status quo. A repressão do protestantismo nos séculos XVI e XVII, em consonância com a Contra-Reforma Católica, exemplifica como o Santo Ofício foi utilizado para reprimir as correntes que questionavam não só o dogma religioso, mas também as estruturas sociais e económicas.
Um exemplo notável foi a perseguição aos alumbrados, um movimento místico do século XVI que propunha uma relação direta com Deus sem intermediação clerical. Embora não constituíssem uma ameaça política imediata, as suas ideias questionavam o monopólio ideológico da Igreja e, por conseguinte, a legitimidade da ordem social. A Inquisição interveio rapidamente, garantindo que estas ideias não prosperavam.
Da mesma forma, os conflitos camponeses e as revoltas populares , embora motivadas por tensões económicas, foram muitas vezes reinterpretadas como heresias para justificar a sua repressão. Esta ligação entre dissidência social e heresia permitiu às elites utilizar a maquinaria inquisitorial para proteger os seus interesses económicos e políticos.
ACÚMULO DE RIQUEZA E MANUTENÇÃO DO STATU QUO
A perseguição económica foi um dos aspectos mais notáveis da Inquisição. Os bens confiscados aos acusados de heresia, na sua maioria convertidos e mouriscos, enriqueceram a Coroa e as elites eclesiásticas. Este saque sistemático, para além de financiar guerras e projectos expansionistas, contribuiu para travar a ascensão de uma burguesia emergente, consolidando assim o poder da aristocracia latifundiária.
Este processo de acumulação de capital pode ser interpretado como um mecanismo de redistribuição regressiva da riqueza, onde os sectores produtivos foram despojados em benefício de uma classe parasitária. Este modelo económico não só limitou o desenvolvimento das forças produtivas, como também fortaleceu o sistema de dependência da pilhagem colonial como principal fonte de riqueza.
A IDEOLOGIA COMO SUPERESTRUTURA LEGITIMANTE
Na perspectiva do materialismo histórico, a religião promovida pela Inquisição funcionou como uma “superestrutura” destinada a justificar as relações de poder e as hierarquias sociais. O discurso religioso ocultou as tensões de classe, desviando a atenção das injustiças sociais e apresentando as desigualdades como parte de uma inevitável “ordem divina”.
Este quadro ideológico foi reforçado através da censura e da supressão do pensamento crítico. O Índice de Livros Proibidos incluía não só obras religiosas heréticas, mas também textos científicos e filosóficos que desafiavam a mundividência teocêntrica. Este controlo do conhecimento não só garantiu a hegemonia ideológica das elites, como também atrasou a modernização de Espanha em comparação com outras nações europeias que passaram por revoluções científicas e industriais.
A INFLUÊNCIA DA INQUISIÇÃO NA ESPANHA CONTEMPORÂNEA
A marca da Inquisição não desapareceu com a sua abolição oficial em 1834. Pelo contrário, as suas práticas e mecanismos de controlo deixaram um legado profundo que se manifestou em momentos chave da história espanhola contemporânea, especialmente durante a ditadura de Franco.
O regime de Francisco Franco, tal como o Santo Ofício, utilizou o catolicismo como instrumento de legitimação e estabeleceu sistemas de vigilância e repressão reminiscentes dos métodos inquisitoriais. Durante o regime de Franco, a censura assumiu formas semelhantes ao Índice de Livros Proibidos, limitando a divulgação de ideias críticas ao regime. A Igreja Católica desempenhou um papel central neste sistema, atuando como guardiã da moralidade e legitimando a repressão estatal.
Além disso, o medo incutido pelas denúncias e denúncias anónimas gerou um clima de desconfiança que afetou as relações sociais durante décadas. Este legado não se limitou ao regime de Franco; mesmo em democracia, certos discursos e práticas reflectem ecos do controlo inquisitorial, como a estigmatização das diferenças políticas e culturais.
TRANSIÇÃO PARA O CONTROLO IDEOLÓGICO MODERNO
Com o passar do tempo, as formas de controlo ideológico evoluíram, adaptando-se às mudanças tecnológicas e sociais. No entanto, alguns princípios fundamentais, como a vigilância e a censura, continuam presentes até aos dias de hoje. As redes sociais, por exemplo, tornaram-se um espaço onde o controlo e a vigilância assumem novas dimensões. A cultura do “cancelamento” e os linchamentos públicos online reflectem a forma como os padrões de controlo social estabelecidos pela Inquisição foram transformados, mas não completamente eliminados.
A Inquisição Espanhola, longe de ser apenas uma instituição religiosa, foi um instrumento ao serviço da monarquia e das elites para consolidar o seu poder económico, político e social. A sua capacidade de controlar ideologicamente a população, reprimir movimentos dissidentes e perpetuar desigualdades materiais torna-o um exemplo histórico de como as instituições podem ser utilizadas para preservar os interesses das classes dominantes. O seu legado, evidente em práticas posteriores como as do regime de Franco, sugere-nos uma reflexão sobre as dinâmicas de poder e de controlo que continuam a persistir na sociedade espanhola e que, nos nossos dias, tentam até camuflar-se sob medidas supostamente "progressistas".
FONTES CONSULTADAS:
- "Inquisição. História Crítica" de Ricardo García Cárcel e Doris Moreno Martínez :
- "A Inquisição Espanhola", de Henry Kamen :
- Jaime Contreras: “História da Inquisição Espanhola (1478-1834)”.
IMAGENS:
1- Execução de hereges na fogueira pela Inquisição espanhola.
2- Câmara de tortura da Inquisição Espanhola. Nela, os hereges estão tendo os pés queimados enquanto o escriba anota as confissões.[2]
Via: https://temposdecolera.blogs.sapo.pt/a-inquisicao-espanhola-a-partir-da-190068