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Pete Hegseth, o bárbaro
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Publicado em 25/11/2024

Targa-se de pura barbárie mesmo, disfarçada com cristianismo.

 

O comentarista da Fox News Pete Hegseth ganhou uma especial notoriedade mundial graças a duas coisas: a notícia de que seria o próximo secretário de Defesa e as fotos de suas tatuagens. Com as fotos das tatuagens, as redes sociais e até os sites noticiosos atraíram os olhares de muitos machos de direita e de muitas feministas, que ficaram muito interessados em contemplar detidamente a tinta que cobria o torso nu e o muque saliente. O “Deus vult” no muque e a cruz de Jerusalém no peito foram o centro das atenções. A mim, o que saltou aos olhos como algo muito esquisito de se tatuar foi um fuzil, posto logo abaixo de uma bandeira dos EUA.

Seja como for, a cruz e o mote têm relação com as Cruzadas. Como as Cruzadas ocorreram sob o catolicismo, os liberais dos EUA ficaram aflitíssimos, e correram para apontar o supremacismo branco contido na simbologia. O inimigo número um do liberalismo no mundo anglófono é o catolicismo, por isso faz sentido que reajam de maneira histérica às tatuagens com temática católica e deixem de lado a tatuagem de fuzil.

Portanto, um dado curioso é que Pete Hegseth não é católico, mas sim protestante. Ele foi “criado por pais cristãos cujas crenças eram paralelas às da igreja batista” e dizia que “por volta de 2018, [entrou] na Colts Neck Community Church com [sua] esposa (que desconfiava de como eram os batistas evangélicos) e a fé se tornou real. O pastor falou do seu passado num lar partido. Eu estou partido, vocês estão partidos, todos estamos partidos”. É de se supor que a esposa seja a atual, já que em 2017 ele se divorciou da segunda e em 2019 se casou com a terceira.

De posse do nome da igreja, podemos visitar o seu site e constatar que é só mais uma daquelas igrejas dos EUA que se parecem com uma empresa que vende autoajuda em reuniões que se parecem com as dos Alcoólicos Anônimos, mais festinhas para socialização. O que o cliente pode esperar de lá? Segundo a página, “será recebido com um sorriso caloroso e a atmosfera positiva e amigável será contagiante. Venha como você é! Somos uma comunidade de pessoas que são casuais em suas roupas, mas não em sua devoção a Jesus. Estamos preocupados com você e não com suas roupas. Traga as crianças! Queremos que a igreja seja um ambiente seguro, divertido e vivificante para seus filhos.” Parece que os devaneios de Cruzadas são algo pessoal. Uma coisa estética, um capricho de Pete Hegseth.

Ao meu ver, a coisa mais relevante a ser notada em Hegseth é que ele é um sionista cristão que adere ao discurso oficial de Netanyahu, segundo o qual Israel, representado por Jerusalém, é, a um só tempo, uma matriz e um posto avançado de uma tal Civilização Ocidental. É por isso que esse protestante se apropria das Cruzadas: elas são representadas como uma ida ao Oriente Médio cujo fito é combater muçulmanos morenos. Assim como os cruzados iam matavam mouros na Terra Santa, os militares dos EUA vão ao Oriente Médio matar aqueles moreninhos que podem ser cristãos, mas em geral são muçulmanos.

Mas é claro que esse resgate das Cruzadas não deixa de ser uma coisa sem pé nem cabeça, e por vários motivos. O mais elementar de todos é que o protestantismo, fundado por Lutero no alvorecer da Modernidade, se baseia na ideia de que a Igreja foi corrompida e é preciso retornar à letra bíblica, ou no máximo aos tempos da Patrística, para reencontrar cristandade pura. A Igreja dos papas é a “Prostituta da Babilônia”. A Idade Média é um período corrupto até a medula. Se as Cruzadas são medievais, e se são ordenadas pelo papado, então deveriam ser uma coisa espúria para qualquer protestante – do contrário, a Reforma não faria sentido.

Uma coisa que tanto a Igreja como Lutero (pelo menos no fim da vida) tinham em comum era a sua aversão ao judaísmo. A ideia de conquistar a Terra Santa para entregá-la aos judeus é bem recente na história da cristandade, e torna ainda mais fantasioso o resgate das Cruzadas para esse fim.

Assim, só podemos concluir que Hegseth tem pouca cultura, e que faz uma leitura freestyle da História. Como sou brasileira, me ocorre uma subcelebridade nacional, o youtuber Paulo Kogos, como um exemplo aparentado: ele é filho de judeus, foi criado como judeu, é sionista, mas anda fantasiado de cruzado (literalmente) e se julga mais católico do que o Papa, porque o Papa é comunista e a Sé está vacante. Eu já me dei ao trabalho de ler um livro dele e resenhar. Em seu sedevacantismo freestyle, Kogos considera Pedro Fabro um santo, mesmo que tenha sido canonizado por Francisco em 2013… Antes das redes sociais, o sedevacantismo era uma pequena corrente de católicos que julgavam que a Sé está vacante desde a morte de Pio XII. Com as redes sociais, o sedevacantismo virou uma coisa de ignorantes pedantes que fazem um livre exame típico de protestantes, só que com um escopo temporal mais amplo, incluindo santos medievais e jesuítas quinhentistas.

Pois bem: dada essa conjuntura, faz perfeito sentido a acusação de supremacismo branco. Como vimos, a propaganda sionista induz o grande público a crer que todo judeu é Ben Shapiro: religioso, direitista e de tez muito branca. O racismo é muito menos científico do que aparenta, já que agora os judeus poloneses são aceitos por serem muito brancos, mas os eslavos, mesmo sendo muito brancos, continuam sendo considerados inferiores – exceto quando ucranianos.

A “islamofobia” é, de fato, um tênue disfarce para o racismo. Quando os cruzados iam para Jerusalém, sua intenção não era matar árabes e beduínos; era colocar o local sob o controle da cristandade. Os reinos muçulmanos costumavam admitir uma pluralidade religiosa maior do que os reinos cristãos. Desde que o cristianismo existe, existem cristãos no Oriente Médio. Assim, mesmo que as cruzadas tenham sido derrotadas, há comunidades cristãs ali muito mais velhas que o descobrimento da América e a invenção do protestantismo. Não obstante, a “Civilização Ocidental” destrói as vidas e as edificações dos árabes, não importando se são cristãos ou muçulmanos, se igrejas ou mesquitas.

Um exemplo mais recente dessa falsa equivalência entre árabes e muçulmanos ocorreu com a reação ao suposto “pogrom” na Holanda: quando os hooligans israelenses apanharam, a direita europeia clamou pela deportação de muçulmanos, que seriam todos antissemitas. Os cantos dos israelenses eram contra os árabes de Gaza, não contra a religião muçulmana. Ora, depois de décadas de globalização, muitos descendentes de árabes e norte-africanos, muçulmanos ou não, nasceram na Europa e têm cidadania. No que depender dessa direita, cidadãos holandeses terão de ser obrigados a “voltar” para locais onde jamais puseram os pés. É um jeito de usar um critério “religioso” para defender limpeza étnica, a despeito da cidadania.

Por último, talvez valha a pena mencionar que o próprio Lutero poderia, se tivesse menos cultura, reivindicar as Cruzadas com base num critério racial. Lutero era racista contra semitas de modo geral, fossem eles árabes ou judeus. Ao atacar os espanhóis, que à época eram a maior potência europeia, acusava-os de serem marranos e mamelucos, e dizia terem uma conspiração com os turcos para dominar e humilhar a Alemanha. (A esse respeito, veja-se María Elvira Roca Barea e seu Imperiofobia.) O próprio Netanyahu, a crermos em Max Blumenthal, explora há décadas o temor de que os hispânicos (que são cristãos) reivindiquem território nos EUA, a fim de que o país os trate como os análogos dos palestinos em Israel. Desde muito cedo, portanto, o protestantismo se presta a agendas de supremacismo racial. Assim, as Cruzadas, sendo protagonizadas por guerreiros bárbaros conversos, atraem o protestante que quer romantizar os guerreiros louros que matam homens marrons.

No fim das contas, trata-se de pura barbárie mesmo, disfarçada com cristianismo.



Autora: Bruna Frascolla

Fonte: https://strategic-culture.su/news/2024/11/24/pete-hegseth-o-barbaro/

 

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