A acelerada e visível degradação do sistema político de Washington só pode causar preocupação, sobretudo para quem conheça, sem ficar preso a preconceitos, a história constitucional dos EUA, e a sua contribuição para o republicanismo e federalismo modernos à escala global.
Assim como no passado o papel dos EUA foi decisivo para resolver crises tão avassaladoras como as duas Guerras Mundiais, hoje, a autofagia que reina nas instituições dos EUA pode contribuir para precipitar um conflito de proporções inauditas, num prazo de meses ou anos. Vejamos dois aspetos-chave da atual crise política.
Primeiro. A saída de Biden da corrida presidencial tem todos os contornos de um golpe palaciano. A mensagem escrita de renúncia, em 21 de julho, contraria todas as declarações anteriores de Biden, que pretendia manter-se na corrida apoiado nos 99% dos votos dos 4000 delegados das eleições primárias democráticas para a nomeação do candidato presidencial, realizadas entre janeiro e junho. O facto de apenas ter aparecido em público, dias depois, apoiando a candidatura de Kamala Harris, parece ser o resultado de uma pressão insuportável sobre Biden.
Na verdade, não é difícil deslindar o negócio que lhe terá sido oferecido: apoiar a candidatura presidencial de Kamala, em troca da não-declaração da sua incapacidade para o cargo, à luz do 25.º aditamento constitucional.
Biden irá continuar a percorrer os corredores da Casa Branca como um fantasma, até ser substituído pelo vencedor das eleições, na cerimónia de 20 de janeiro de 2025. Como foi possível que o Partido Democrata tivesse ocultado os sintomas, visíveis há anos, da falência mental de Biden? Quem preside hoje em Washington?
Segundo. Ao escutar os 53 minutos do discurso do PM israelita, Netanyahu, perante as duas câmaras do Congresso, em 24 de julho, recordei-me de um clássico aviso de Hans J. Morgenthau, na sua obra-prima de 1948 sobre relações internacionais: “Nunca permitas que um aliado fraco tome decisões no teu lugar.”
O líder do genocídio, em curso em Gaza, falou como se fosse presidente dos EUA em tempo de guerra. Declarou a “vitória total” como objetivo, e insultou como “idiotas” os milhares de manifestantes que, no exterior, lembravam ao mundo que quem usava da palavra era um criminoso de guerra. Muitos deputados democratas estiveram ausentes, mas por 58 vezes a sala aplaudiu de pé…
Uma vergonha para os EUA e um sinal de perigo para o mundo. O assassinato do líder do Hamas, Ismail Haniyeh, mostra que o PM israelita fala a sério. Nas circunstâncias atuais, em caso de escalada bélica no Médio Oriente, o poderio militar dos EUA ficará às ordens de Netanyahu.
Autor: Viriato-Soromenho Marques
Publicado originalmente por dn.pt