
Luanda tem vivenciado, desde segunda-feira, 28 de Julho de 2025, dias conturbados, eventos que tiveram como substrato uma greve da Associação de Taxistas.
A origem
É importante recordar que, na sequência do que vem sendo adoptado nos últimos anos, no princípio do mês de Julho, o governo angolano implementou mais uma nova medida de retirada de parte da subvenção ao preço dos combustíveis, afectando desta vez o preço do gasóleo, o que, por conseguinte, resultou no aumento do preço dos transportes públicos e privados, assim como de todo um conjunto de produtos e serviços que já conheciam uma dinâmica inflacionária insuportável para a vasta maioria das famílias e cidadãos individuais.
Como resultado desta recente medida de austeridade, foram realizadas diversas manifestações de protesto, dentre as quais a anunciada greve de uma das associações de taxistas de Luanda. Porém, embora marcado efectivamente pela paralisação da larga maioria de prestadores deste serviço de transporte, esse dia registou um misto de protestos e actos que podem ser classificados como vandalismo, arruaça e outro tipo de práticas que se configuram como crimes.
Geralmente, existe a tendência (por parte de determinados sectores) de se observar os referidos actos simplesmente a partir do prisma do direito, ou a partir de um ponto de vista judicial. Para uma sociedade, cujas instituições projectam e reflectem todas as suas práticas meramente com base no Direito, menosprezando todos os demais campos do saber, os acontecimentos de 28 de Julho ficam resumidos e descritos como prática de actos criminosos, quiçá para desprestigiar a referida associação de taxistas, talvez para desacreditar e desencorajar próximas manifestações, ou ainda para justificar a implementação de medidas de segurança estremas nos dias subsequentes.
Quer seja como resultado de uma estratégia, ou como consequência de um defeito estrutural, restringir o sucedido a um prisma exclusivamente judicial e de urbanidade, desprezando totalmente as causas, os estímulos sociais e psíquicos por trás de um acontecimento desta natureza, é o pior erro que as instituições de um país podem cometer, mesmo diante de graves prejuízos para a integridade da vida humana, seja ela de um civil ou de um agente da ordem, assim como dos infelizes danos à propriedade pública ou privada. O momento exige frieza de análise (ou comentários) que ao invés de se aterem única e exclusivamente às consequências, devem ter a honestidade de abordar as causas e/ou a origem do problema.
Como resultado do agravamento da crise económica em Angola sentida a partir de 2015 (depois da década dourada), crise esta ampliada principalmente por factores estruturais internos, como a dependência do petróleo, a dolarização da economia, a não diversificação da economia, e agravada pelo embargo monetário que consiste na suspensão de venda de dólares ao BNA por parte dos EUA, a retirada de Angola dos bancos correspondentes com a zona euro por orientação do Banco Central Europeu, e o consequente isolamento do país do sistema financeiro internacional, foi o cenário perfeito para a implementação da conhecida regra de três: eu crio-te um problema, amplifico este problema para depois vender-te a solução.
O Partido Único da Economia Angolana
Foi neste contexto que, ainda em 2017, um certo economista neoliberal com ampla exposição na imprensa angolana já propagava e defendia, como verdade absoluta para a resolução dos problemas económicos de Angola, um acordo com o FMI, a privatização de activos públicos a uma escala sem precedentes e a retirada total da subvenção ao preço dos combustíveis. A isto se adicionou a introdução de um IVA de 14% e outras medidas tributárias corrosivas, assim como a invisibilidade do Estado face às demandas sociais da população. De 2018 em diante, estava formada uma corrente de opinião monocórdica, da qual fazem parte economistas, governantes/integrantes de instituições financeiras e aduaneiras, bem como jornalistas que passaram a compor o que classifico como o Partido Único da Economia Angolana (PUEA). Trata-se de um grupo minoritário, mas com a máquina do Estado e o domínio dos órgãos de comunicação social a seu favor. Este conjunto de indivíduos (fundamentalistas de mercado) introduziu o Neoliberalismo no país, ignorando todo um conjunto de factores de natureza histórica, social, cultural e até mesmo económica.
Em 2023, durante a celebração do aniversário de um amigo, enquanto conversava com um destacado economista angolano (formado no exterior do país) perguntei, a título de provocação, por que razão tinha eu a impressão de que em Angola existem apenas economistas neoliberais. O mesmo respondeu-me com a serenidade que o caracteriza, que ele é um keynesiano, que é crítico do neoliberalismo, no entanto a projecção e monopólio dos economistas neoliberais em Angola é obra da imprensa e de sectores ligados à equipa económica governamental.
A opinião do referido economista veio apenas confirmar as minhas próprias conclusões de que a imprensa angolana é conivente com este processo de lavagem cerebral, ao afastar do espaço mediático a participação de economistas keynesianos e propagandear debates monocórdicos sem a presença de opiniões com pensamento económico divergente do neoliberalismo. Por meio de uma linguagem de difícil compreensão para a vasta maioria da população, construíram a típica narrativa austericida do suplício necessário e do sofrimento sem dor.
Porém, tal como alertei em 2021, a partir de cometários radiofónicos, e em 2022 por meio do livro Thatcherismo em Angola, as consequências das medidas de austeridade introduzidas começam a ser insuportáveis para a população. A situação propicia o aproveitamento político? Claro que sim! Mas, neste aspecto, a população que não tenha ilusões quanto a uma esperança vinda da oposição, uma vez que, se, ironicamente (e para azar dos angolanos), a larga maioria dos partidos da oposição praticamente não debate de forma clara o seu prisma político, já é sobejamente conhecido o sistema económico que o líder do maior partido da oposição prefere - chega a ser tão neoliberal quanto a política do governo actual, como deixam transparecer pronunciamentos anteriores e recentes. Ou seja, Angola é hoje um país sob domínio dos austericidas e crentes da religião do fundamentalismo de mercado e do Estado invisível.
A austeridade também é invisível, mas ela dói! Ela dói tanto no quotidiano do pacato cidadão, que as manifestações de agonia do povo angolano começam a fazer-se sentir. A mesma boca de aluguer, defensora do mercado e dos interesses do capital externo, o mesmo porta-voz do neoliberalismo em Angola, que até recentemente dizia (sem olhar para os salários dos países da SADC) que Angola é o país da região com o preço dos combustíveis mais baixo (para justificar a retirada das subvenções), hoje já afirma que o problema de Angola são os salários que são baixos. Ora esta! O debate prévio deveria ter sido sobre a importância da manutenção da subvenção ao preço dos combustíveis num país com os salários como os que existem em Angola. Talvez fosse também necessário dizer a verdade sobre quem mais se beneficia com a venda de combustíveis em Angola. Mas, como é típico num neoliberal, arranja-se uma fuga para frente.
No referido dia 28 de Julho, circularam nas redes sociais áudios que retratavam a indignação ofegante de um renomado jornalista, contra os tumultos ocorridos. Porém, durante mais de um ano, esse mesmo jornalista tem recebido no seu programa radiofónico aquele que é o porta-voz do neoliberalismo em Angola. A verdade seja dita, em nenhuma ocasião, esse mesmo jornalista, no exercício da sua função, questionou o seu convidado sobre as consequências económicas e sociais das teses fundamentalistas de mercado que o mesmo tem pregado na referida rádio.
O mundo e a alergia ao austericídio
Em 1990, Margaret Thatcher foi obrigada a renunciar ao cargo de Primeira-ministra do Reino Unido como resultado da vaga de protestos contra o imposto polltax. No ano 2000, cidadãos de diversas partes da Europa protestaram contra o aumento dos impostos sobre os combustíveis. Em 2011, cidadãos de vários países europeus como a Espanha, Alemanha, Itália, Chipre e Irlanda organizaram massivos protestos contra medidas de austeridade implementadas por alguns governos, no quadro da dívida soberana europeia. Na Grécia e no Reino Unido, surgiram a respeito os movimentos Don´t Pay e Don´t Pay UK.
Em 2024, o presidente do Quénia, William Ruto, recuou na medida que previa o aumento de impostos, depois de uma onda de protestos que resultou na morte de 23 pessoas. Nesse mesmo ano, uma vaga de manifestações eclodiu na Nigéria, tendo milhares de cidadãos protestado contra a retirada de subsídios aos preços dos combustíveis. Por seu turno, no Chile, país que foi o primeiro laboratório do Neoliberalismo no início dos anos 80, impostas pela ditadura assassina de Augusto Pinochet (por obra dos EUA e do Reino Unido), as medidas neoliberais ainda hoje causam um número recorde de suicídios.
Não se conhece país nenhum no mundo, onde o resultado de medidas impostas pelo FMI, a austeridade e o neoliberalismo tenham tornado a sociedade mais feliz, nem onde o mercado interno tenha ganhado consumidores com capacidade aquisitiva como consequência da asfixia da condição económica da população. O neoliberalismo é contraditório em si mesmo (excepto no facto de permitir o enriquecimento e a concentração de renda por parte de uma pequena minoria). As medidas neoliberais geraram no passado e gerarão sempre consequências nefastas para a sociedade. Porém, a reacção popular face ao austericídio varia de acordo com as características culturais, a estrutura intelectual e a instrução política de cada povo. Uma população com baixo nível de instrução, uma população que não conhece a presença de serviços sociais no seu quotidiano, explode em consonância com a sua forma, não de compreender, mais sim de sentir a realidade.
Mesmo nos casos em que determinados indivíduos são recrutados e infiltrados em movimentos de protestos no sentido de descredibilizar a legitimidade das manifestações, ainda assim o risco potencial de os acontecimentos escaparem das rédeas dos manipuladores é extremamente alto. A história está repleta de operações, inclusive da CIA e do Mossad, que saíram do controlo. Não existe precisão de resultados, quando o objectivo é a manipulação psicológica das massas. As massas não pensam. Regra geral, as massas sentem e podem agir por impulso. E o impulso pode ser a fome, a carestia de vida, o desespero, o sentimento de injustiça ou simplesmente a necessidade de fazer explodir um fardo pesado há muito entalado no peito ou na garganta. E é necessário apenas uma ocasião para que seja aquele o rastilho de pólvora que aconteceria de uma forma ou de outra.
O facto curioso é que, ao longo dos últimos anos, desde a implementação em Angola das políticas económicas austericidas, surgiu, a nível de determinadas zonas de Luanda, Benguela e não só, um fenómeno que tem consistido na invasão, por parte da população, de contentores com mercadoria provenientes do Porto de Luanda e do Porto do Lobito. Em muitas ocasiões, vimos imagens retratando camiões em andamento derramando arroz ou massambala e a população raspando do chão com o misto de areia e sujidade para comer (quiçá para alimentar crianças desnutridas em casa). Enquanto angolano que foi deslocado de guerra e que viveu nas matas, nunca vi situações idênticas, nem mesmo durante a crise gerada pela guerra civil em Angola. Não me lembro que esse fenómeno, invisibilizado por parte da imprensa, tenha sido tema de debate em espaços radiofónicos ou televisivos. Mais do que actos de vandalismo silencioso, ele retrata em si um sintoma. Um sintoma político, social e civilizatório, mas principalmente um sintoma das medidas económicas neoliberais vigentes.
O julgamento da história
Os actos de 28 de Julho de 2025 em Luanda, com todas as suas consequências, podem significar apenas uma amostra do que será o futuro de Angola caso as políticas neoliberais não sejam removidas. Às vezes, ocorre a quem exerce o poder, a quem tem o privilégio de falar para um microfone de uma rádio ou na televisão, a quem tem a possibilidade de influenciar, a sensação de divindade inatingível, independentemente do impacto da materialização das suas ideias na vida de milhares de pessoas. Num dado momento, Milton Friedman também pensou o mesmo.
Em 11 de Setembro de 1973, por acção da CIA, Salvador Allende, presidente eleito pelo povo chileno, foi assassinado durante um golpe de Estado planeado e executado pelos governos dos EUA e do Reino Unido. O crime de Allende? Foi pretender a implementação de um Estado de bem-estar de matriz socialista.
Uma junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet assumiu o poder sob a coordenação estreita das elites conservadoras da europa e dos EUA. É importante recordar que Friedrich von Hayek (que viria a ser a principal figura por detrás do neoliberalismo) tinha instaurado a sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Mas, no princípio da década de 70, os conservadores do liberalismo clássico continuavam sendo derrotados pelos keynesianistas e pelos marxistas a nível da batalha das ideias. Face ao persistente descrédito e impopularidade, os liberais clássicos resolveram retirar as máscaras e apoiar abertamente regimes autoritários, pois somente junto de governos com deriva autoritária seria possível a implementação das suas doutrinas económicas macabras, visto que nessas condições as críticas e as revindicações populares seriam contidas à força. Por isso mesmo, Friedrich von Hayek foi um dos maiores defensores de Augusto Pinochet e amigo de outros ditadores apoiados pela CIA, tais como Hadji Suharto, na Indonésia, e António de Oliveira Salazar, em Portugal. Mas o Chile foi o laboratório da primeira experiência do neoliberalismo.
Tal como tive a oportunidade de desenvolver em artigo anterior1, Milton Friedman, o mesmo que, em 1935 em Washington, beneficiou de iniciativas sociais promovidas pelo New Deal (programa governamental implementado por Franklin Roosevelt), posteriormente tornou-se num forte opositor de modelos económicos que prevêem a participação activa do Estado. O detalhe a reter é que Friedrich von Hayek foi professor de Milton Friedman e de outros integrantes da nefasta Escola de Chicago.
Se, por um lado, a CIA actuou militar e politicamente para a queda de Allende e instauração de Augusto Pinochet no poder no Chile, por outro lado, a agenda económica do regime ditatorial e sanguinário de Pinochet estava sob o comando de Milton Friedman, com o apoio de Friedrich von Hayek e de Arnold Harberger.
De acordo com a autora Jéssica Whyte (2023), um dia depois do golpe contra Salvador Allende já tinha sido entregue a membros do governo de Pinochet um programa económico de 189 páginas, denominado El Ladrillo e elaborado por Friedman e seus comparsas, contendo medidas como a ̎liberalização do comércio, privatização generalizada, incluindo a privatização da previdência social, assim como a introdução de um imposto sobre o valor agregado regressivo ̋.
Foi durante um encontro com Pinochet, em 1975, que Milton Friedman aconselhou o ditador chileno a implementar o que ele designou por “terapia de choque”, termo nefasto que passou a representar as ideias neoliberais desde então. O resultado imediato foi o aprofundamento do desemprego, grave recessão, tendo o PIB do Chile caído 13% ao ano, queda do poder de compra para 40% do nível de 1970, destruição do poder sindical, redução drástica dos salários reais, dentre outras tragédias.
A paranoia dos neoliberais é tal, que von Hayek chegou mesmo a elogiar Pinochet pelo que ele considerou como sendo “a sua disposição de governar o país sem ficar obcecado com compromissos populares ou expectativas políticas de qualquer tipo”. Como é possível perceber, o neoliberalismo é na verdade uma doutrina com laivos de elementos patologicamente antissociais, que promove a desumanização da política e da economia.
O movimento anti-Pinochet, no entanto, foi crescendo em todo o mundo. Organizações de defesa dos direitos humanos, a amnistia internacional, figuras académicas e a sociedade civil no ocidente passaram a tomar consciência das atrocidades cometidas pelo regime chileno e sua relação com os experimentos neoliberais dos Chicago Boys. Como consequência, começaram as inúmeras críticas públicas e acusações contra Milton Friedman e Friedrich von Hayek, em virtude da relação dos mesmos com um dos regimes mais sanguinários e retrógrados, tanto a nível do desprezo sistemático dos direitos e liberdades fundamentais da população chilena, como também pelo que o economista e sociólogo Abdré Gunder Frank denunciou como o “genocídio económico no Chile”.
O ciclo restrito da elite conservadora europeia e americana fez um certo esforço para amparar e proteger as suas criações. Porém, tal como já havia ocorrido anos antes com Friedrich von Hayek, que foi rejeitado e repudiado pela maioria da comunidade académica e política, Milton Friedman passou o resto da sua vida sendo alvo de críticas e de protestos em quase todos os espaços em que se deslocasse, quer fosse programas de televisão, palestras ou locais públicos.
Orlando Letelier foi, durante o governo de Salvador Allende, embaixador do Chile nos EUA. Aquando do golpe de Estado, Orlando encontrava-se na capital do seu país e foi detido pelas tropas de Pinochet. Posteriormente, foi solto e obrigado a exilar-se nos EUA. Em relação à “terapia de choque” aplicada por Milton Friedman no Chile com o amparo do autoritarismo de Pinochet, Letelier escreveu que o referido “plano económico tinha de ser imposto, e no contexto chileno apenas seria possível matando milhares, com estabelecimento de campos de concentração em todo o país e o encarceramento de mais de 100.000 pessoas em 3 anos”. Depois destes pronunciamentos, em setembro de 1976, Orlando Letelier foi assassinado num atentado à bomba em plena Washington, por obra da CIA. Um mês depois, em Outubro do mesmo ano, a Real Academia Sueca de Ciências (elite conservadora) atribuiria o prémio Nobel de economia a Milton Friedman. Durante a cerimónia, houve protestos contra Friedman em pleno salão nobre, na presença da realeza e de centenas de convidados. Soaram gritos de repúdio contra o genocida económico. Até ao momento da sua morte, Milton Friedman negou qualquer envolvimento com o regime de Pinochet - “não sou representante do Chile, não tenho compromisso com o governo do Chile” – reagia o economista diante do repúdio das pessoas onde quer que fosse. Certamente Friedman não teve uma morte tranquila, pois morreu com as mãos manchadas do sangue e da agonia de milhares de chilenos.
O caso de Friedman serve de exemplo para os integrantes do Partido Único da Economia Angolana, para os economistas e políticos defensores do abraço ao FMI, propagadores e implementadores das medidas neoliberais em Angola, e para os jornalistas do silêncio cúmplice. A todos estes é necessário lembrar que o Neoliberalismo gera sempre e inevitavelmente as suas consequências. Então é necessário que estas pessoas assumam este “bebé”.
Com a onda de vandalismo, mortes e diversos prejuízos à propriedade, é comum o surgimento da tendência ater-se às consequências. Porém, inclusive o crime encerra em si mesmo um sintoma social. Sintoma de uma enfermidade provocada ou agravada por apologias, por decisões e práticas políticas anteriores. As palavras talvez passem, mas do julgamento da história os austericidas não escaparão.
Autor: Orlando Victor Muhongo - Especialista de Relações Internacionais, Relações Interculturais e Estudos Globais.
1 Angola: do Neoliberalismo à lenda do país que se desenvolve sem planificação