Escrevemos várias vezes nas páginas do AntiDiplomatico que a grandeza económica fundamental para se poder compreender plenamente o conflito que estamos a viver é a Posição Líquida de Investimento Internacional, que indica a posição de dívida ou de crédito de uma nação em relação ao resto do mundo. Antes de mais, é necessário um esclarecimento fundamental: esta grandeza pode ser encontrada observando as chamadas “contas nacionais”, ou seja, aquelas contas específicas que agregam os três compartimentos fundamentais de um “sistema-país”, isto é, as famílias, as empresas e as administrações públicas. Nesta leitura dos fenómenos económicos, o sector das famílias representa a entidade detentora da poupança, enquanto o agregado das empresas detém a dívida privada necessária aos seus investimentos; finalmente, o sector das administrações públicas é aquele que detém a dívida pública, necessária à realização dos investimentos públicos. É evidente que são as instituições de crédito e, de um modo mais geral, os mercados financeiros que correlacionam a procura de poupança por parte das administrações públicas e das empresas com a oferta de poupança por parte das famílias.
Dito isto, podemos acrescentar que, quando a poupança das famílias cobre totalmente as necessidades de financiamento das empresas e das administrações públicas, o sistema-país em causa é considerado em perfeito equilíbrio financeiro e, nesse caso, a situação financeira líquida é considerada equilibrada. Quando, pelo contrário, a poupança excede as necessidades nacionais, a situação financeira líquida é considerada positiva e, por conseguinte, esse sistema-país é um “credor líquido do resto do mundo”, na medida em que o excesso de poupança é utilizado no estrangeiro. Quando, por fim, a poupança das famílias de um país não é suficiente para cobrir as necessidades de investimento das empresas e das administrações públicas, então é utilizada a poupança excedentária no estrangeiro (por outras palavras, o país endivida-se junto dos chamados “investidores internacionais”) e, nesse caso, a situação financeira líquida diz-se negativa ou, mais uma vez, esse país é um “devedor líquido ao resto do mundo”.
Como se pode adivinhar, a posição financeira negativa é a mais delicada para uma nação, porque se se tornar (na opinião dos credores, incluindo os internacionais) demasiado elevada, levaria a um aumento das taxas de juro exigidas pelos credores, gerando, por sua vez, uma espiral descendente em que a dívida cria mais dívida devido aos juros, arriscando, a longo prazo, um colapso financeiro com os credores estrangeiros a abandonarem o país, levando o Estado, as empresas privadas e os intermediários bancários à falência.
No fundo, este cenário é o que agora ocorre ciclicamente na Argentina e que foi arriscado em Itália, Grécia, Espanha e Portugal após a grande crise de Wall Street de 2008.
Mas esta magnitude financeira é também a que melhor do que qualquer outra explica o que se tem passado nos últimos anos, pois permite medir o abismo em que os EUA mergulharam desde 2008 com uma situação financeira que se foi afundando gradualmente até um nível abismal e contra a qual, neste momento, só a imponente máquina militar das forças armadas de Washington serve de “garantia suprema” da dívida nacional da superpotência norte-americana.
Esta é uma situação que muitos presidentes norte-americanos tentaram resolver: Obama, por exemplo, propôs a criação do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento com a Europa, que inclui muitos dos grandes credores dos norte-americanos (por exemplo, a Alemanha e os outros países do Norte da Europa), na esperança de conseguir reequilibrar a balança financeira através do reequilíbrio da balança comercial. No entanto, o tratado foi rejeitado pelos europeus sob vários pretextos. Mais tarde, Trump também tentou resolver a situação ameaçando com fogo e enxofre contra a Europa com direitos e taxas de segurança. Mas mesmo neste caso a questão não foi resolvida e, de facto, foi com a administração Biden que os americanos romperam todos os laços, primeiro empurrando a Ucrânia para provocar a Rússia e depois (após a invasão da Ucrânia) forçando a Europa a impor sanções à Rússia que se revelaram ruinosas para a própria Europa. Acrescente-se que, na análise americana, a relação muito estreita entre a Europa e a Rússia era vista como ruinosa para a competitividade das empresas americanas, precisamente porque combinava matérias-primas russas baratas com a força industrial europeia numa sinergia estreita. Como se isso não bastasse, por uma estranha coincidência (sic!), a artéria chave que transportava o gás russo para a Europa foi destruída: estamos a referir-nos, evidentemente, à sabotagem providencial (para Washington) do gasoduto do Norte Stream que atravessava todo o Báltico até à Alemanha.
Podemos definir estes acontecimentos relacionados com o conflito na Ucrânia como uma série de golpes de martelo que certamente enfraqueceram a economia europeia. De facto, a posição financeira líquida dos EUA no primeiro ano da guerra (e das sanções) recuperou muito em termos de posição financeira líquida, passando de -18800 mil milhões de dólares imediatamente antes do início da guerra para -16200 mil milhões de dólares um ano após o início da guerra, com uma melhoria prodigiosa de 2600 mil milhões. O problema é que depois desta fase inicial da guerra e depois desta aparente recuperação, a NIIP americana começou a afundar-se de novo até chegar ao resultado devastador dos dias de hoje, quando foram divulgados pela Reserva Federal os dados do terceiro trimestre de 2024 em que a posição financeira líquida atingiu o alarmante valor de -23600 biliões de dólares em passivos. Um recorde negativo sem precedentes para a economia dos EUA.
Este valor torna-se ainda mais dramático quando comparado com a posição financeira líquida da Alemanha no terceiro trimestre de 2024, tal como relatado pelo Bundesbank e que corresponde a + 3300 mil milhões de euros. Tudo isto apesar dos despedimentos em massa e do encerramento de fábricas na Alemanha durante o ano passado, devido à recessão económica desencadeada pela grave crise energética causada pelas sanções e pela sabotagem do North Stream.
O que é que se pode retirar destes dados? Certamente, a primeira avaliação que se pode fazer é que a economia dos EUA não consegue ser competitiva, apesar de a UE estar a perder o fôlego devido a uma dramática crise energética “induzida”; por conseguinte, não parece exagerado definir a economia dos EUA como comatosa, enquanto a economia europeia se mostra resistente, apesar dos golpes de martelo que sofreu. Então, tudo está bem para a Europa? Pensamos que - dadas as circunstâncias - encarar estes dados de forma positiva (numa perspetiva europeia) seria um erro grave. De facto, é fácil prever que Washington será pressionado a fazer tudo o que estiver ao seu alcance; algo, aliás, já amplamente anunciado por Donald Trump, que falou em impor tarifas comerciais muito elevadas e um aumento exorbitante (até 5% do PIB) das despesas militares para os países europeus da NATO.
O encerramento, a partir de 1 de janeiro, dos gasodutos ucranianos que transportavam o gás russo para a Europa também deve ser visto como um diktat imposto por Washington a Kiev. De facto, do ponto de vista dos ucranianos, a medida causou certamente danos à Rússia, mas causou danos ainda maiores à própria Ucrânia, que deixará de ter gás à sua disposição e deixará de receber as preciosas receitas devidas aos direitos de passagem sobre o seu território. Este encerramento deve provavelmente ser lido como o primeiro de uma longa série de golpes que a administração Trump irá infligir à Europa para a devastar economicamente.
As palavras do antigo Presidente russo Medvedev durante o seu discurso de fim de ano “Preparem-se para acontecimentos impossíveis em 2025”... entre a Europa e os EUA não parecerão certamente descabidas.
Autor: Giuseppe Masala, nascido na Sardenha, licenciou-se em economia e especializou-se em “finanças éticas”. Cultiva duas paixões, a língua Python e a literatura. Publicou o romance (que, nas suas ambições, deveria ser o primeiro de uma trilogia) “Una semplice formalità”, vencedor da terceira edição do prémio literário “Città di Dolianova” e também publicado em França com o título “Une simple formalité”, e um conto “Therachia, breve storia di una parola infame”, publicado numa coletânea da Historica Edizioni. Declara-se cibermarxista, mas, tal como Leonardo Sciascia, considera que “não há fuga de Deus, não é possível. O êxodo de Deus é uma marcha em direção a Deus”.
Crédito da foto: antidiplomatico.it
Fonte: https://www.lantidiplomatico.it/dettnews-2025_europa_e_usa_allanno_zero/29296_58475/