Roteiro para compreender um processo inovador e complexo. A reforma agrária radical. Os ziguezagues dos anos 1960 e 70. A abertura de Deng, com modernização e desigualdade. Os desafios atuais e a decisão de não recuar diante dos EUA.
Em 1º de outubro de 1949, o líder comunista Mao Zedong (1893-1976) anunciou a criação da República Popular da China. Trezentas mil pessoas se reuniram na Praça da Paz Celestial para saudar novo governo e, também a nova liderança. Depois de fazer o anúncio inicial, Mao hasteou a nova bandeira chinesa. Em seguida, o comandante militar Zhu De passou em revista as tropas do Exército de Libertação Popular. Celebrações semelhantes foram realizadas em outras partes da China.
A fundação da República Popular da China encerrou o Século de Humilhação, iniciado com a primeira Guerra Anglo-Ópio de 1839, incluindo a longa Segunda Guerra Mundial – que começou com a invasão japonesa da Manchúria em 1931. Dez dias antes, na primeira sessão plenária da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, Mao disse: “Estamos todos convencidos de que nosso trabalho entrará para a história da humanidade, demonstrando que o povo chinês, que perfaz um quarto da humanidade, agora se levantou”. As palavras povo e república, no nome do novo país, não estavam ali à toa.
Falar em república significava concluir a Revolução de 1911 que encerrou a dinastia Qing (1644-1911) e inaugurou uma forma de soberania pós-monárquica. O republicanismo chinês formou-se a partir das visões reformistas de pessoas tão diversas quanto Kang Youwei (1858-1927) e Liang Qichao (1873-1929) – que apoiaram uma monarquia constitucional – e foram colocadas em prática por Sun Yat-Sen (1866-1925). Ele não era apenas contra monarquias, mas, o mais importante, era contra a miserável herança cultural dos séculos e pela unidade do povo chinês em um território extenso.
Já o elemento do povo tem uma rica história no pensamento chinês e na teoria marxista, significando que o Estado deve operar em nome de uma gama de classes que formam a maior parte da sociedade – camponeses, trabalhadores, os intelectuais e a pequena burguesia –, as quatro estrelas na nova bandeira da China, com a quinta e maior estrela representando o Partido Comunista.
A República Popular foi entendida desde o início como um instrumento para a transformação da sociedade chinesa e não o ápice de uma transformação anterior. Não era um Estado socialista, mas uma república popular, que se esforçaria para construir o socialismo.
Desde o início, foi entendido pela liderança do Partido Comunista que a Revolução Chinesa não se encerrava em 1949, mas era um processo iniciado muito antes, pelo menos desde a formação da República Soviética Chinesa, em Ruijin, no Sul da China, ainda em 1931 até chegar a base revolucionária de Yan’an, no Noroeste, em 1936.
Os três movimentos de massas
Dois dos principais movimentos de massas que se aprofundaram logo após 1949 foram a vitória final sobre as forças do Kuomintang, no Sudoeste e Sul da China, o estabelecimento de aliados no mundo – particularmente a União Soviética, com o Tratado Sino-Soviético de fevereiro de 1950 – e, também contra a invasão norte-americana à península coreana, em junho de 1950.
A formação da República Popular da China ocorreu em um momento em que ela ainda não havia estabelecido a unidade do território, nem encontrado os meios para se defender contra a agressão imperialista. Esses dois movimentos de massa – a derrota das forças de direita no contiente e a construção defensiva contra a agressão imperialista – forçaram a China a adiar brevemente o terceiro movimento de massas, que no entanto foi o mais duradouro: o plano de Reforma Agrária.
As decisões do inverno de 1950, no entanto, iniciaram um processo de reforma agrária nas zonas recém-libertadas, as quais foram substancialmente concluídas na primavera de 1953. O primeiro princípio geral da Lei da Reforma Agrária observava:
Fica abolido o sistema de propriedade, baseado na exploração feudal, por parte da classe latifundiária, sendo substituída pelo sistema de propriedade dos camponeses, a fim de libertar as forças produtivas das regiões rurais e desenvolver a produção agrícola, visando a abrir o caminho para a industrialização da Nova China.
Esse era o objetivo. O processo era para que o Estado encorajasse o poder político de base, treinado e liderado pelo Partido Comunista, para conduzir à Reforma Agrária de forma guiada, planejada e ordenada. O Partido não daria terras aos camponeses, mas garantiria que eles pudessem construir estruturas, regionais e locais, para redistribuir os recursos em suas áreas.
O confisco forçado não era o centro, mas sim a educação política nas áreas rurais para transformar as relações agrárias da opressão feudal em uma base mais justa. Em 1956, 90% dos camponeses do país tinham terras para cultivar, 100 milhões de camponeses estavam organizados em cooperativas agrícolas e o setor camponês privado foi abolido.
A Reforma Agrária teve vários resultados positivos: significou que os sem terra e os trabalhadores rurais passaram a ter a posse da terra e, também, os recursos que lhes permitiam viver com dignidade; significou que a população rural, possuindo seu quinhão de terra, desenvolvesse por tabela o interesse em melhorá-la, o que aumentou a produtividade; significou que a antiga cultura de liderança dos senhores de terra, dentro da velha ordem de relações patriarcais fossem eliminadas, junto com seus resultados miseráveis. Esses desdobramentos positivos melhoraram as condições de vida e trabalho da maioria do povo chinês, construindo quase de imediato um sentimento de lealdade à Revolução Chinesa.
Superando as amarras do passado
Em 1949, a taxa oficial de alfabetização na China era de 20%, embora tudo indique que fosse um número altamente inflado. Era simplesmente uma medida das condições miseráveis de vida para a massa da população chinesa. Outra eram a mortalidade infantil em impressionantes 250 por 1.000 nascidos vivos. A expectativa média de vida não ultrapassava 35 anos.
Durante o longo Século de Humilhação sob as potências imperialistas, o Produto Interno Bruto (PIB) da China caiu de cerca de um terço da economia mundial, no início do século XIX, para apenas 5% em 1949. Naquela época, em termos de PIB per capita, a China era a décima primeira nação mais pobre do mundo, à frente apenas de oito países africanos e dois asiáticos.
A imensa turbulência no interior da China a partir do século XIX – refletida nas guerras contra os britânicos e nas revoltas camponesas, como as rebeliões de Taiping (1850-1864), Nian (1851-1868), Du Wenxiu (1856-1872) e Dungan (1862-1877) – e a espoliação, por uma pequena classe de proprietários feudais, levaram os camponeses e os trabalhadores a um cenário na qual a conciliação era impossível.
Camponeses e trabalhadores lutaram porque tinham que lutar, mas foram capazes de prevalecer em razão do contexto da guerra contra os japoneses – e das brilhantes escolhas estratégicas feitas pelos comunistas, durante e após o ápice da Longa Marcha.
Superar os grilhões do passado não era uma opção fácil. A China, simplesmente, não tinha recursos para redistribuir riqueza imediatamente, por meio da criação de uma infraestrutura educacional e de saúde adequada. Durante o processo de Reforma Agrária, a China desenvolveu o Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957), sob a liderança de Zhou Enlai (1898-1976) e Chen Yun (1905-1995). O plano foi elaborado ao longo de dois anos e enfatizou quatro pontos teóricos:
1. Construir uma inédita base industrial para satisfazer as necessidades do povo chinês, tanto nas cidades quanto nas áreas rurais. De todo o capital comprometido para a construção, 58,2% foi para a construção dessa capacidade industrial.
2. Erguer uma nova China baseada na realidade e não em expectativas utópicas. Isso implicou que os preciosos recursos mobilizados por Pequim precisavam ser utilizados criteriosamente – e que a China precisava treinar um enorme exército de burocratas para gerir a expansão do Estado e, assim, utilizar o poder dele para ajudar na democratização da economia.
3. Usar todos os meios que os chineses pudessem reunir, mas sem muita dependência de ajuda externa, embora a União Soviética forncesse assistência nos primeiros anos, sobretudo para a industrialização chinesa. Durante o período do Primeiro Plano, a União Soviética enviou três mil especialistas técnicos para a China, e acolheu 12 mil estudantes chineses que foram estudar disciplinas técnicas. Os empréstimos estrangeiros para o desenvolvimento representaram apenas 2,7% da receita financeira total do Estado chinês no Primeiro Plano.
4. Lidar corretamente com o equilíbrio entre a acumulação de capital, em um país pobre, e as necessidades de consumo da população. O Plano articulou, de forma cuidadosa, a mediação entre os interesses imediatos do povo com seus interesses de longo prazo. Colocar muitos recursos na construção de capital fixo poderia diminuir o entusiasmo pelo socialismo; e esgotar os recursos na resolução de problemas imediatos só adiaria os problemas para mais tarde.
A sofisticação teórica do Primeiro Plano permitiu alguns avanços importantes, mas eles não foram suficientes para as necessidades sociais que se insinuavam. Enquanto os fatores objetivos de melhoria das condições materiais de vida avançaram progressivamente, os principais problemas sociais tiveram que ser confrontados por técnicas mais subjetivas. O Partido Comunista organizou campanhas de massa para combater o analfabetismo (1950-1956), incluindo aulas nos campos para o campesinato.
Pegas no turbilhão da década de 1940, muitas áreas rurais da China desenvolveram uma tradição de ajuda mútua que se tornou o Sistema Médico Cooperativo Rural na China Vermelha. Com essa forma de seguro médico, a China começou a distribuir seus recursos para construir a saúde pública, auxiliada pelos soviéticos, incluindo a construção de hospitais gerais nas províncias rurais e policlínicas nas aldeias. Tanto a alfabetização quanto a saúde melhoraram dramaticamente por causa dos quadros altamente motivados da China, que levaram sua experiência de sacrifício e estratégia de guerra para a área social.
Porém, uma das desvantagens da necessidade de confiar no subjetivismo para construir o socialismo é que essa estrutura tende ao exagero e ao erro, como no apelo à Revolução Cultural (1966-1976). Mas mesmo aqui, o registro não é totalmente negativo. Durante esse período, a China formalizou o programa dos Médicos de Pés Descalços [Chìjiǎo Yīshēng], que permitiu que as faculdades de medicina fornecessem treinamento básico para médicos irem atender as pessoas em áreas rurais e, assim, permitiu que o campesinato tivesse acesso a cuidados médicos primários onde isso não existia.
Esse tipo de subjetivismo era necessário para lutar contra as tentações da corrupção e a deterioração da disciplina de quadros, que se tornaram ambos problemas sérios na China; foram formulados por meio da campanha de 1951 contra os “três males” no setor estatal – corrupção, desperdício e burocracia – e da luta de 1952 contra os “cinco males” no setor privado – suborno, evasão fiscal, roubo de propriedade estatal, fraude em contratos governamentais e roubo de informações econômicas.
No período de 29 anos pré-Reforma (1949-1978), a expectativa de vida da China aumentou em 32 anos. Em outras palavras, para cada ano após a Revolução, mais de um ano foi adicionado à vida de um chinês médio. Em 1949, a população do país era 80% analfabeta, o que em menos de três décadas foi reduzido para 16,4% nas áreas urbanas e 34,7% nas áreas rurais; a matrícula de crianças em idade escolar aumentou de 20% para 90%; e o número de hospitais triplicou.
De 1952 a 1977, a taxa média anual de crescimento da produção industrial foi de 11,3%. Em termos de capacidade produtiva e desenvolvimento tecnológico, a China passou de não ser capaz de fabricar um carro em 1949 para lançar seu primeiro satélite no espaço sideral em 1970. O satélite Dongfanghong – que significa “O Oriente é Vermelho” – tocou a canção revolucionária homônima em loop, enquanto estava em órbita por vinte e oito dias.
Os ganhos industriais, econômicos e sociais na transição para o socialismo sob Mao formaram as bases do período pós-1978.
Quebrando as correntes da dependência
Em 1954, Mao discursou na Terceira Sessão Conselho Central do Governo Popular e levantou uma questão que estava na mente de muitos delegados:
Nosso objetivo geral é lutar para construir um grande país socialista. Nosso país é grande, tem 600 milhões de pessoas. Quanto tempo levará para realizar a industrialização socialista, a transformação socialista e a mecanização da agricultura e, assim, fazer da China um grande país socialista? Não estabeleceremos um prazo rígido agora. Provavelmente levará um período de três planos quinquenais, ou quinze anos, para estabelecer essas bases. A China se tornará um grande país? Não necessariamente. Acho que para construirmos um grande país socialista, cerca de cinquenta anos, ou dez planos quinquenais, provavelmente serão suficientes. Até lá, a China estará em boa forma e bem diferente do que é agora. O que podemos fazer no momento? Podemos fazer mesas e cadeiras, xícaras e bules, podemos cultivar grãos e transformá-los em farinha – também podemos fazer papel. Mas não podemos montar um único automóvel, avião, tanque ou trator. Então, não devemos nos gabar e ser arrogantes. Claro, não quero dizer que poderemos nos tornar arrogantes quando produzimos nosso primeiro carro, mais arrogantes quando fizemos dez carros e ainda mais arrogantes quando fizemos mais e mais carros. Isso não vai dar certo. Mesmo depois de 50 anos, quando nosso país estiver em boa forma, devemos permanecer tão modestos quanto somos agora. Se até lá nos tornarmos presunçosos e menosprezarmos os outros, será ruim. Não devemos ser presunçosos nem mesmo daqui a cem anos. Nunca devemos ser arrogantes.
Três pontos importantes vêm deste discurso. Primeiro, que levará tempo para construir o socialismo, já que a revolução em um país pobre como a China requer que o Estado, o partido e o povo construam a base material para o socialismo: primeiro, a paciência é um valor central do marxismo de libertação nacional. Segundo, que a China precisava de ciência, tecnologia e capacidade industrial para quebrar as correntes da dependência e, assim, produzir bens modernos de alto valor.
Para fazer isso, a China teve que confiar na importação de ciência e tecnologia e treinar seu próprio pessoal científico e tecnológico. Terceiro, a humildade é um valor tão central quanto a paciência, pois a China não está buscando avançar para o nacionalismo chauvinista, mas para os propósitos do socialismo internacional.
A tentativa de romper com o problema crônico da dependência foi tentada – e, substancialmente, falhou – durante o Grande Salto Adiante (1958-1962) e a Revolução Cultural (1966-1976). Muitas lições foram aprendidas então, e durante o período de dois anos após a morte de Mao (1976-1978).
Em maio de 1976, Hu Fuming (1935-2023), um membro do Partido Comunista e professor na Universidade de Nanquim, publicou um artigo com um título interessante: A prática é o único critério para a verdade [Shíjiàn shì jiǎnyàn zhēnlǐ de wéiyī biāozhǔn]. A posição filosófica de Hu Fuming, que era atraente para muitas pessoas no Partido Comunista, foi adotada por Deng Xiaoping (1904-1997) em seu discurso de 1978 para a Terceira Sessão Plenária do XI Comitê Central do PC, intitulado, Emancipar a mente, buscar a verdade dos fatos e se unir — como um só – ao olhar para o futuro [Jiěfàng sīxiǎng, shíshìqiúshì, tuánjié yīzhì xiàng qián kàn].
O que parecia pragmatismo era, na verdade, uma adesão ao materialismo, definindo o curso do socialismo chinês nos trilhos da realidade em vez de tentar apressar as coisas por meio de um excesso de subjetivismo. A era da Reforma, que começou em 1978, foi construída sobre essa base filosófica.
Em janeiro de 1963, Zhou Enlai havia estabelecido um programa para a China focar nas Quatro Modernizações, a saber, modernizar a agricultura, a indústria, a defesa, bem como a ciência e a tecnologia. Em seu discurso de 1978, Deng retornou a essas Quatro Modernizações e disse que elas não poderiam ocorrer “se o pensamento ossificado não fosse eliminado”.
No ano seguinte, Deng disse que a China deve se esforçar para se tornar uma “sociedade moderadamente próspera” [Xiǎokāng Shèhuì], o que só poderia ocorrer com o avanço da base industrial. Ao focar na abertura e na política da China para atrair a indústria tecnologicamente avançada para o país, uma avaliação desigual surgiu da era da Reforma que começou em 1978.
O país nunca seria capaz de enfrentar o desafio das Quatro Modernizações e avançar para o socialismo se ignorasse os problemas criados pelo lugar dependente da China na ordem neocolonial do mundo, bem como a podridão que frequentemente se instala quando o poder se torna um fim em si mesmo.
O capital estrangeiro privado veio primeiro da diáspora chinesa, depois dos capitalistas do Leste da Ásia – com o Japão na liderança – e, finalmente, do capital ocidental. Esse investimento entrou na China para aproveitar a força de trabalho altamente educada e saudável, e teve que transferir ciência e tecnologia como um pré-requisito, o que formou uma base para o crescimento do próprio setor de ciência e tecnologia da China.
A China impôs restrições significativas ao capital, como as de que ele tinha que atender às necessidades produtivas dos planos chineses, transferir tecnologia e não poderia repatriar os lucros na quantidade que desejasse. A dependência foi quebrada por essa insistência, construída sobre a base das primeiras décadas da Revolução Chinesa.
Foi uma consequência da longa trajetória da Revolução Chinesa, qu alcançou altas taxas de crescimento econômico – de quase 10% ano a ano – no período iniciado em 1978, sendo capaz de abolir a pobreza absoluta e que ampliou substancialmente o consumo doméstico e total – incluindo educação – ao longo das quatro últimas décadas.
Vários aspectos, no entanto, foram negligenciados nesse processo. Dois merecem destaque: (i) a produtividade agrícola foi aumentada por meio de um sistema de responsabilidade familiar – que enfraqueceu as fazendas coletivas na sua busca de uma maior socialização do trabalho e uma forma mais elevada de coletividade; (ii) o papel do Partido Comunista tinha que ser fortalecido na China em uma sociedade com uma educação política de maior qualidade e disciplina para os quadros. Em 1980, Deng fez um discurso em que destacou as principais práticas ilícitas: burocratização, superconcentração de poder, comportamento patriarcal e quadros dirigentes desfrutando de mandato vitalício e privilégios de todos os tipos.
A cadeia de dependência foi enfraquecida, portanto, mas não quebrada, uma vez que o período de Reforma tenha trazido seus próprios problemas – como aumento da desigualdade e enfraquecimento do tecido social.
Os Ziguezagues da Revolução
Em 2012, 34 anos após o início do período de abertura, o líder do Partido, Hu Jintao, nascido em 1942, disse ao XVIII Congresso do Partidoque a corrupção havia se tornado uma questão-chave. “Se não conseguirmos lidar bem com essa questão”, ele alertou, “isso pode ser fatal para o partido e até mesmo causar seu colapso e a queda do Estado”. Naquele Congresso, Hu foi sucedido por Xi Jinping, nascido em 1953, cuja primeira iniciativa foi abordar essa questão e reviver a cultura socialista na China.
Em seu discurso inaugural como chefe do Partido, Xi se comprometeu a “atacar tigres e moscas ao mesmo tempo”, referindo-se à corrupção que havia se espalhado dos altos escalões até o nível de base. O Partido Comunista lançou as medidas de “oito pontos” para seus membros, para limitar práticas como reuniões inconsequentes e recepções extravagantes, e defendeu diligência e economia.
Em um ano, 25% das reuniões oficiais foram canceladas, 160 mil “funcionários fantasmas” foram removidos da folha de pagamento do governo e 2.580 projetos de construção oficiais desnecessários foram interrompidos. Até maio de 2021, um total de mais de 4 milhões de quadros e funcionários foram investigados, com 3,7 milhões deles tendo sido punidos pela Comissão Central de Inspeção Disciplinar. Pelo menos 43 membros do Comitê Central e seis membros do Politburo foram punidos por corrupção, incluindo ex-ministros, governadores provinciais e presidentes dos maiores bancos estatais.
Os comentários de Hu e as ações de Xi refletiram preocupações de que, durante o período de alto crescimento após 1978, os membros do Partido Comunista distanciaram-se cada vez mais do povo. Durante os primeiros meses de sua presidência, Xi lançou uma “campanha da linha de massas” para aproximar o partido das bases.
Como parte da campanha de Alívio da Pobreza Direcionada, lançada em 2014, três milhões de quadros do Partido foram enviados para viver e trabalhar em 128 mil aldeias. Em 2020, apesar da pandemia de Covid-19, a China erradicou com sucesso a pobreza extrema, contribuindo para 76% da redução global da pobreza no mundo, nas últimas quatro décadas.
O XIX Congresso Nacional do Partido Comunista, em 2017, marcou uma mudança na principal contradição enfrentada pela sociedade chinesa, do desenvolvimento rápido das forças produtivas para o enfrentamento do desequilíbrio e do desenvolvimento inadequado. Em outras palavras, o período de reforma e abertura foi visto como uma pré-condição para a construção de uma sociedade socialista moderna, mas seu trabalho ainda está incompleto.
Além da autocorreção do Partido Comunista, as palavras e ações fortes de Xi contra “moscas e tigres” corruptos contribuíram para a confiança do povo chinês no governo. De acordo com um estudo de 2020 da Universidade de Harvard, o índice de aprovação do governo central é de 93,1%, e ainda maior nas regiões mais subdesenvolvidas do interior. Esse aumento da confiança nas áreas rurais resulta do aumento dos serviços sociais, da confiança nas autoridades locais e da campanha contra a pobreza.
Em 2016, refletindo sobre a continuação da dependência chinesa, Xi disse que a “dependência da tecnologia crucial é o nosso maior problema oculto. A forte dependência da tecnologia crucial importada é como construir nossa casa em cima da casa de outra pessoa”. A guerra comercial dos Estados Unidos contra a China, que começou em 2018, ocorreu após o colapso, em países como China, Índia e Brasil da confiança na capacidade dos Estados Unidos de serem o “comprador de última instância”. Isse se deu após a Grande Recessão, iniciada em 2007.
Esses fenômenos – a falta de confiança e a guerra comercial – colocaram a China em um caminho que divergiu do Ocidente, construindo a Iniciativa Cinturão e Rota, também conhecida como Nova Rota da Seda (2013) e, em seguida, desenvolvendo Novas Forças Produtivas de Qualidade (2023).
O primeiro conceito mostra o interesse da China em construir novos mercados longe dos Estados Unidos e da Europa, mas também usando esse processo para auxiliar nos avanços do desenvolvimento em países do Sul Global. O segundo conceito, central para o Pensamento de Xi Jinping, é sobre mover a China para “liderar o desenvolvimento de indústrias emergentes estratégicas e indústrias futuras”, como Xi disse em setembro de 2023.
A guerra comercial dos Estados Unidos pressionou a ciência chinesa a avançar em novas áreas, como inteligência artificial, biomedicina, nanotecnologia e fabricação de chips de computador. Dois sinais dos rápidos avanços são: a economia digital da China em 2022 foi responsável por 41,5% de seu PIB, enquanto sua taxa de penetração de 5G foi maior que 50% em 2023.
Embora o crescimento dessas indústrias estratégicas tenha sido fundamental para o desenvolvimento da China, o governo tomou medidas decisivas nos últimos anos para restringir a “expansão desordenada do capital”, visando especificamente o monopólio das Big Tech e outros setores privados, bem como a especulação imobiliária. Ao mesmo tempo, houve uma ênfase maior no combate às três montanhas enfrentadas pelo povo chinês, que são os altos custos de educação, moradia e saúde.
A Revolução Chinesa continua em processo. Ela está inacabada porque a história prossegue e há muitos problemas a serem resolvidos, incluindo o caráter do relacionamento da China com o resto do Sul Global, enquanto busca uma nova arquitetura de desenvolvimento após o fracasso completo da abordagem de “austeridade” e dívida do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
O fato de a China ter conseguido abolir a pobreza absoluta e construir, ao mesmo tempo, tecnologia avançada indica que o equilíbrio entre investimento e consumo foi bem administrado. A estabilidade e a força do país permitiram que ele agora entre na esfera mundial e ofereça liderança para resolver problemas aparentemente intratáveis, como entre o Irã e a Arábia Saudita ou os diversos grupos que luta pela independência da Palestina.
Este é um bom momento, depois destes 75 anos, para voltar e estudar o discurso de Mao de 1954, onde ele destacou a necessidade da China desenvolver ciência e tecnologia de forma independente, paciente e humilde. Em 2021, com a erradicação da pobreza extrema e no centésimo aniversário da fundação do Partido, a China conseguiu atingir seu “Primeiro Objetivo do Centenário” de construir “uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”. Em outras palavras, atingir Xiaokang para um país de 1,4 bilhão de pessoas. Agora, está em um caminho desconhecido para atingir seu Segundo Objetivo do Centenário de construir “um país socialista moderno que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso” até 1949, no centenário da fundação da República Popular da China. Essas são características importantes de qualquer processo de desenvolvimento, mas especialmente um enraizado na tradição socialista.
Autores: Tings Chak e Vijay Prajad | Tradução: Antonio Martins, depois de Hugo Albuquerque
Fonte: https://outraspalavras.net/sem-categoria/revolucao-chinesa-75-anos/